Por Roberta Faria e Rodrigo Pipponzi*
As últimas semanas foram históricas para a filantropia brasileira. De acordo com o Monitor das Doações, atualizado diariamente pela Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), mais de R$ 3 bilhões já foram doados para ações de combate ao coronavírus no país – e o número continua crescendo. É um valor sem precedentes e arrecadado em tempo recorde: como perspectiva, o montante corresponde a tudo que foi doado por organizações brasileiras em todo o ano de 2018, de acordo com o Censo GIFE.
O movimento foi impulsionado principalmente pelo setor financeiro – com destaque para o Banco Itaú, que arrebatou os holofotes ao doar R$ 1 bilhão para o combate à pandemia. Não brilha sozinho: o que se vê hoje é uma atuação crescente e empenhada de todo o setor privado para atenuar os efeitos da crise, das mais diversas maneiras. Doa-se dinheiro, insumos, capacidade produtiva, estrutura logística, produtos, serviços. Doa-se cestas básicas, marmitas, material de higiene e limpeza, equipamentos de proteção, testes rápidos, leitos de UTI. Doa-se diretamente para organizações sociais, fazendo match funding com campanhas de arrecadação, montando editais e fundos próprios. (Além do Monitor das Doações, este guia do Instituto Doar é uma boa maneira de acompanhar – e apoiar! – as ações.)
Só não vale ficar de braços cruzados: a sociedade está de olho, comparando a generosidade dos cheques, com níveis crescentes de expectativa e exigência. A maioria das empresas, felizmente, parece estar vendo essa cobrança também como oportunidade de resgatar valores e de se relacionar com sua comunidade. Se os anúncios das ações às vezes parecem carregar um certo exibicionismo no estilo “minha doação é maior que a sua!”, vá lá – esse é o tipo de rivalidade em que todos ganham.
Mas quanta ajuda é o suficiente? Há quem levante o cartaz do “Não fez nada além da sua obrigação” até para doações como a de R$ 1 bilhão do Itaú – afinal, justifica-se, são negócios que lucram bilhões todos os anos sobre a sociedade e, não raro, desfrutam de tremenda generosidade do estado, na forma de incentivos, tributos, leis favoráveis, pacotes de ajuda e outros afagos. Logo, doar neste momento é o mínimo que fazem do seu dever social. Já outros aplaudem cada centavo doado: a hora não é de perguntar de onde veio o dinheiro, pois quem tem fome e falta de ar tem pressa, alertam lideranças sociais. Como em uma espécie de reforço positivo, celebra-se cada iniciativa e doador para que a motivação – e os recursos – não parem de chegar.
Sociedades em que a cultura de doação já está mais amadurecida parecem ter encontrado uma medida justa e democrática, capaz de motivar e abranger empresas e doadores de todos os tamanhos de bolso: o 1%. No hemisfério norte, uma série de iniciativas convida negócios e pessoas a comprometer-se com a doação regular da centésima parte dos lucros empresariais ou rendimentos pessoais, como uma espécie de dízimo da responsabilidade social. A escolha da causa, das instituições beneficiadas ou mesmo da forma de doar vai do gosto do doador. O importante é to take the pledge, isto é, assumir o compromisso (e, de preferência, publicamente, para não voltar atrás no primeiro balanço do mercado…).
Um exemplo é a Pledge 1%, que encoraja empresários a doar essa parcela do lucro, estimula a criação de produtos com pelo menos 1% de renda revertida para alguma causa e defende que colaboradores devam investir 1% de seu tempo de trabalho em alguma ação de voluntariado. Quando a doação contínua e disciplinada é colocada em números absolutos, esse percentual aparentemente insignificante se revela transformador. Que o diga a garota-propaganda da Pledge 1%, a multinacional de softwares norte-americana SalesForce. Desde que aderiu ao pacto, em 2014, até o fim de 2019, a SalesForce somava, com seus 1%, US$ 280 milhões em doações monetárias para cerca de 40 mil ONGs, além de 3,8 milhões de horas de trabalho voluntário doadas entre seus funcionários – e do aposto recorrente de empresa mais inspiradora entre as grandes do Vale do Silício.
No movimento global 1% For The Planet, o compromisso de doar 1% do lucro (ou rendimentos, no caso de pessoas físicas) para ONGs da causa ambiental já arrecadou US$ 225 milhões. Os associados corporativos, que vão de pequenos negócios, como a Flat Tire, cerveja hipster do Colorado, nos EUA, a multinacionais de luxo, como a indústria de cosméticos francesa Caudalie, passando por negócios de reputação engajada, como a marca de roupas esportivas Patagonia, ganham o direito de estampar em seus produtos o celebrado selo da iniciativa – uma contrapartida de marketing poderosa para atrair consumidores da geração millenial em diante.
Já o pacto da 1 For The World é pelo chamado altruísmo eficaz: a sugestão é doar 1% para ONGs capazes de fazer o uso mais intensivo possível do recurso para combater a miséria no planeta. O foco é engajar pessoas físicas, e não empresas, com um forte chamado em especial aos jovens: a aposta é que, se começam a doar hoje 1% do que recebem na bolsa de estágio, chances são de que carreguem esse hábito até chegarem a CEO (enquanto convencer o CEO que nunca doou a abrir mão de 1% dos ganhos parece bem mais difícil).
Outras iniciativas, como a Giving What You Can, a The Life You Can Save ou a Percent Pledge são mais flexíveis: a sugestão de doar varia de acordo com o bolso – a proposta é ser algo imperceptível ao estilo de vida ou às contas da empresa. 1% é um bom começo, mas as metas podem ser mais ambiciosas e chegar 10%.
No Brasil, ainda não há um movimento estruturado para captar esse outro 1%. O mais perto surgiu agora, na esteira da pandemia, quando o ator Caco Ciocler tomou a iniciativa de criar a Lista Fortes Brasil, em referência à famosa lista de super ricos. No lugar das fortunas, são listadas as grandes doações, com destaque para negócios que se comprometem a doar ao menos 1% do lucro líquido para combater a Covid-19. Os valores são autodeclarados e não há auditoria ou compromisso formal – o objetivo, os próprios organizadores alertam, é incentivar e não cobrar. Uma longa lista de celebridades embarcou na brincadeira e, como contrapartida, se compromete a divulgar, de graça, as marcas que entrarem na lista a cada atualização.
A sugestão de doar 1% também foi ventilada esses dias pelo filósofo Leandro Karnal, em entrevista recente à CNN. No vídeo, agora viralizado, Karnal sugere ao Brasil seguir a Índia, primeiro país do mundo onde a doação corporativa virou lei. Desde 2014, empresas com lucro anual acima de 10 bilhões de rúpias – o equivalente a cerca de R$ 700 milhões – são obrigadas a doar 2% do lucro para a filantropia, em áreas como educação, combate à pobreza e promoção da igualdade de gênero. A política fez o volume de doações anuais crescer 742% no primeiro ano e trouxe a discussão sobre a responsabilidade social corporativa para o centro das reuniões de diretoria.
No futuro próximo, a adoção de um compromisso percentual pode ser uma ferramenta revolucionária para a filantropia brasileira – além de facilitar a vida de empresas, cidadãos e ONGs ao lançar bases do quanto é possível e necessário doar, com investimento real e efetivo de recursos, não apenas o repasse daqueles incentivados por lei. Para se ter uma ideia do potencial, apenas as 286 empresas de capital aberto na Bovespa somaram R$ 216,8 bilhões de lucro em 2019. 1% desse valor já faria crescer 60% o “orçamento” anual da filantropia brasileira em tempos tranquilos. Isso sem falar nas empresas de capital fechado, nos pequenos e médios negócios, nas pessoas físicas…
Não é apenas uma boa ação: é uma estratégia de sobrevivência e de crescimento sustentável. A pandemia do novo coronavírus está escancarando mazelas que estavam naturalizadas na sociedade brasileira – como se fosse normal e aceitável que milhões de pessoas passem fome, não tenham moradia digna ou acesso à água e esgoto, mesmo vivendo nas cidades mais ricas do país. Não é. A reconstrução da economia e da sociedade pós Covid-19 terá de ser regenerativa e envolver um pacto social entre cidadãos, organizações da sociedade civil, empresas e estado. Transformação de verdade leva tempo. Demanda esforços – e recursos – contínuos. Doar dinheiro é ser parte da solução.
Este outro 1% pode ser o combustível para catalisar mudanças necessárias. O estado não resolverá tudo – e organizações não-governamentais com recursos bem utilizados cobrem as brechas com mais conhecimento de causa, foco, capacidade de inovação, capilaridade e escala. Impacto social não acontece da noite para o dia, e nesse cenário o compromisso não é só remediar tragédias, mas construir uma nova realidade. De quebra, ganham também os negócios. Inúmeras pesquisas apontam que marcas engajadas atraem mais talentos, vendem mais e contam com mais lealdade dos consumidores – especialmente entre as gerações mais jovens. Ignorar essa demanda é escolher o caminho da obsolência. Transformá-la em negócio é preferir o ganha-ganha para todos.
PS. Seguindo essa lógica, o Itaú superou a meta: doou 3,77% do lucro líquido de 2019. E a sua empresa? E do seu próprio bolso, quanto doou? Vamos lá, é só 1%! E para um estímulo a mais: dia 5 de maio tem edição especial do Dia de Doar pelo combate à Covid-19. Ótima ocasião para anunciar esse novo compromisso.
*Texto publicado na coluna Razões para Doar, de Época Negócios, em abril de 2020.