Por Roberta Faria e Rodrigo Pipponzi*
Em 2019, 2 de cada 100 dólares do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos foram doações. Parece pouco para você? Pois saiba que essa é a porcentagem mais expressiva do mundo. A título de comparação, vale ressaltar que ela é quase dez vezes maior do que a brasileira, onde doações representam apenas 0,23% do PIB (segundo a Pesquisa Doação Brasil, do IDIS, feita em 2015).
Essa e outras informações valiosas para entender as tendências da filantropia mundial, aos olhos de um país que tem muito mais experiência do que o Brasil no assunto, foram divulgadas pelo Giving Institute no relatório Giving USA 2020 (você pode baixar um resumo geral aqui). Olhando para a forma como doações são feitas nos Estados Unidos, fica mais fácil enxergar caminhos possíveis de trilhar no Brasil – especialmente considerando a onda de generosidade que tomou conta das empresas e indivíduos por aqui desde o início da pandemia (já checou o Monitor das Doações hoje?).
Em 2019, os Estados Unidos registraram US$ 449,64 bilhões em doações. Esse número inclui empresas, fundações e indivíduos. É dele que devemos extrair ensinamentos. Aqui vão os quatro que consideramos mais importantes:
1. TER UMA CAUSA DO CORAÇÃO É O PRIMEIRO PASSO PARA SE ENGAJAR DE VERDADE
Em 2019, as doações para organizações ligadas a causas como educação, artes, cultura e humanidades apresentaram crescimentos acima de 10% nos Estados Unidos, mesmo com valores corrigidos pela inflação. Doações para organizações ligadas ao meio ambiente e à proteção animal tiveram aumento de 9,4%. Em contrapartida, doações a entidades religiosas tiveram um aumento tímido: embora ainda representem a maior parte das doações feitas pelos cidadãos (29% do total), a alta foi de apenas 0,5%.
Os números mostram o início de uma mudança de direcionamento, saindo de uma bandeira mais generalista e ligada à fé para causas e iniciativas mais específicas – e mais pessoais. Laura MacDonald, vice-presidente da Giving USA Foundation, aponta que o crescimento das doações em tantos setores ao mesmo tempo revela um cidadão com interesses cada vez mais amplos, e que a variedade de oportunidades para encontrar uma causa para defender está transformando a maneira como indivíduos praticam sua generosidade, especialmente na última década. Quanto mais bandeiras são levantadas, mais chances há de as pessoas encontrarem uma causa com que se identifiquem para, então, oferecer apoio. Doar, muitas vezes, é quase um ato de ativismo.
E o que vale para o cidadão sem grandes patrimônios, vale, também, para os indivíduos com alto patrimônio líquido – aqueles com pelo menos US$ 1 milhão em ativos financeiros: nos Estados Unidos, pelo menos 24% deles integram o conselho de alguma organização não-governamental, e 81% doam porque acreditam na missão das instituições que apoiam. Também vale ressaltar que 53% fazem doações pelo sentimento de realização pessoal que encontram ao protagonizarem o fortalecimento de uma causa.
Ou seja: ser apaixonado por um assunto é ponto de partida para envolvimento real e contínuo com ele. (Durante a pandemia da COVID-19, saúde é a causa global, claro. Mas, antes disso, você já sabia dizer que tipo de iniciativa te comovia mais para fazer uma doação? Talvez seja educação? Meio ambiente? Incentivo à pesquisa científica ou à cultura e arte? Se precisar de um empurrãozinho para descobrir, há um teste, chamado Descubra Sua Causa, que pode ajudar, criado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social. Você pode
fazê-lo aqui.)
2. EMPRESAS JÁ ENTENDEM SEU PAPEL NA FILANTROPIA E ESTÃO CHAMANDO A RESPONSABILIDADE PARA SI
Em 2019, a filantropia corporativa foi a que apresentou o maior crescimento em doações nos Estados Unidos, com um aumento de 13,4% em relação a 2018. Foi a maior escalada do setor em cinco anos. Além disso, incríveis 92% das corporações pesquisadas têm pelo menos um programa de matchfunding. Ou seja: se um funcionário de uma empresa faz uma doação e informa a empresa sobre ela, a resposta da instituição é fazer uma doação também – um conceito um tanto estrangeiro no Brasil, onde as campanhas de matching são feitas quase exclusivamente por fundações e institutos. Em média, 24% dos empregados participam dos programas realizados pelas companhias onde estão.
Os dados mostram que as corporações estão cada vez mais cientes de que precisam usar seu poder para exercer protagonismo e fortalecer a cultura de doação na sociedade. Como já falamos por aqui, a maior parte das doações só acontece quando são precedidas por um pedido. E o setor corporativo está sentado na mesa dos grandes, com força, influência e capilaridade suficientes para mobilizar, impactar e gerar doações em escala global.
Escolhendo causas que falem mais alto para si, empresas podem contagiar seus clientes, funcionários e conselheiros com o mesmo senso de responsabilidade. Esse é um movimento que vem crescendo no Brasil durante a pandemia – e sobre o qual pairam muitas dúvidas quanto à manutenção das ações no futuro.
3. O FUTURO DA DOAÇÃO É (QUASE TOTALMENTE) ONLINE
Organizações que quiserem receber doações precisam fortalecer suas plataformas digitais – para ontem. Se antes os baby boomers ainda carregavam as práticas da geração anterior de fazer doações via mala direta, por exemplo, isso já não é mas uma realidade para as gerações seguintes, especialmente entre os mais jovens: no caso dos millennials, mais da metade das doações são feitas em plataformas online, sendo 40% delas realizadas através websites e 17% por redes sociais. Já na Geração Z, websites continuam sendo um canal poderoso, recebendo 28% das doações desse público. As redes sociais, porém, não estão muito atrás, sendo o caminho para 21% das doações.
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, o próprio Instagram começou a testar botões de doação durante transmissões ao vivo e até mesmo nos stories. Mesmo que a ferramenta não tenha chegado em todas as contas (e mesmo se ela não engrenar nesse momento), uma coisa está clara: é necessário estar onde o público está. E no caso das gerações mais jovens, conversas online têm cada vez mais poder. As lives, já bastante presentes no calendário dos brasileiros com acesso à internet, são um exemplo disso: o Monitor das Doações já aponta mais de R$ 15 milhões captados através desse tipo de evento desde março, com QR Codes na tela direcionando para páginas de doação.
Ainda assim, redes sociais e seus algoritmos imprevisíveis são terrenos alugados na internet, e não funcionam nos termos dos seus usuários, o que pode gerar surpresas e quebrar estratégias de captação. Daí a importância de uma plataforma própria, como um website. É um chão sólido e confiável para potenciais doadores: um lugar seguro onde cada organização pode atestar a transparência de seu trabalho à própria maneira, sem interferências. É onde instituições podem prestar contas, disponibilizar material institucional sem limitações e praticar sua própria captação de recursos.
4. EM UMA SOCIEDADE QUE VALORIZA A CULTURA DE DOAÇÃO, O ELO MAIS FORTE DA CORRENTE SERÁ SEMPRE O INDIVÍDUO
Apesar do forte crescimento das doações por parte das corporações norte-americanas, o grande poder da filantropia ainda está no cidadão comum: nos Estados Unidos, as doações feitas por indivíduos representam incríveis 69% do total, tendo alcançado US$ 309,66 bilhões em 2019. O número é 4,7% maior em relação a 2018. No Brasil, onde os dados são bastante imprecisos, especialistas apontam que esta proporção de doadores individuais não passa de 10%. “É animador ver que as contribuições por parte de empresas e fundações aumentaram nos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, notar que cidadãos continuam representando a maior parte das doações”, ressalta Ted Grossnickle, presidente do Giving Institute.
Essa informação traz consigo a certificação de que o caminho para uma sociedade generosa é, sim, o trabalho de formiguinha. É o senso de coletividade. É o entendimento de que a união realmente faz a força. E é a compreensão de que, para construir um mundo mais justo, doar deve ser um hábito de todos – um ato de cidadania tão necessário para o funcionamento das instituições quanto pagar impostos, por exemplo.
A pesquisa ainda mostra que pessoas físicas estão cada vez mais engajadas e conscientes do seu papel nesse cenário. O consumidor norte-americano está de olho no comportamento das empresas, pronto para boicotá-las ou apoiá-las como forma de praticar seus próprios valores: 79% das pessoas dizem que seriam mais leais a marcas que têm propósitos ligados diretamente a questões sociais. Além disso, 66% se dizem dispostas a trocar um produto que já estão utilizando por outro, de uma empresa que mostre que tem um objetivo maior além do lucro.
A mensagem é clara: cidadãos estão ditando o caminho por meio de suas demandas, e empresas estão começando a ouvir. O que testemunhamos desde o início do ano, já sabemos, foi inédito: a filantropia nacional e internacional arregaçando as mangas em tempo recorde, nas condições mais adversas das últimas décadas, para agir de maneira responsiva, ágil, colaborativa e engajada, em menor ou maior escala. Tudo isso mostra como somos capazes de expandir horizontes e ir muito além do que estávamos fazendo antes da pandemia. O desafio agora é institucionalizar práticas generosas que surgiram durante a crise.
É preciso fazer mais do que só remediar os estragos, e é dever de todos nós ir além de só estancar a sangria. Apenas um movimento sustentável, focado no longo prazo, será capaz de gerar transformação social – seja em comunidades menores ou regiões inteiras, lá fora ou aqui no Brasil. Os muitos milhões doados até aqui são mais do que um gesto de generosidade: eles são, também, a prova de que sempre podemos oferecer mais do que imaginamos. Podemos inserir mais doações no orçamento. Prestar contas de forma mais transparente. Solidificar medidas de investimento social privado para agir de forma menos assistencialista e ver mudança na realidade dos mais vulneráveis com o passar dos anos. Ao mostrar que têm recursos e poder para gerar doações, empresas e indivíduos revelam, também, que não têm mais desculpas para agir de forma omissa diante daqueles que precisam de ajuda. Sempre haverá o que fazer. E sempre haverá como fazer mais.
*Texto publicado na coluna Razões para Doar, de Época Negócios, em junho de 2020.