Artigo 
17/11/2021
Defendendo a sociedade civil pós-Covid

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Por Daniel Ferrell-Schweppenstedde, gerente de Política e Relações Públicas da CAF*

 

No começo da crise pandêmica de 2020, bilhões de dólares foram disponibilizados por países no mundo todo para apoiar economias e lidar com o impacto da crise. Ao mesmo tempo, a sociedade civil mobilizou milhões de pessoas e em muitos países representou a espinha dorsal de um sistema informal de bem-estar e saúde. Mas, como os governos apoiaram a sociedade civil nesses esforços, se é que apoiaram? E isso foi visto como parte integral da resposta à Covid? Isso é algo que exploramos no relatório da CAF do ano passado, “Giving Civil Society the Right Response”, que reuniu insights e exemplos do mundo para destacar como governos podem e devem apoiar a sociedade civil para que ela possa exercer um papel vital em tempos de crises.

 

Examinamos uma ampla gama de respostas, ações legislativas e iniciativas, com muitos governos disponibilizando fundos e incluindo a sociedade civil em sua resposta. Mas, em geral, o cenário era, na melhor das hipóteses, mediano, com a sensação clara de que a sociedade civil, na maioria das vezes, foi lembrada por último. Muitas vezes, governos não haviam pensado em sua resposta à crise, considerando o trabalho como algo que estava dado — ou, pior, tinham usado a Covid-19 como um pretexto para restringir ainda mais o espaço no qual a sociedade civil opera.

 

Está claro, de acordo com as descobertas, que há uma necessidade maior de defesa da sociedade civil e de torná-la mais central em resposta à crise. Se restrições foram estabelecidas, é necessário a ação para convencer legisladores a revogá-las para que a crise não se torne permanente. E, para legisladores, há uma oportunidade maior, que não deveria ser desperdiçada, de se envolver de novo com a sociedade civil. A recuperação e o preparo para a crise avançarão se a sociedade civil estiver envolvida e seu valor for reconhecido.

 

Nosso parceiro CIVICUS está planejando lançar uma campanha renovada para promover o Rebuilding for Good — construir um conjunto de princípios que podem ser usados por atores e redes da sociedade civil para construir uma narrativa comum sobre o valor da sociedade civil e defender o caso para que ela seja mais reconhecida como uma parceira nos esforços de reconstrução nos níveis local, nacional e global.

 

Nas conversas que tivemos até agora, um conjunto de fatores chave emergiu que precisam ser considerados para levar a sociedade civil para o palco central da legislação. (Essa lista não está completa e em nenhuma ordem específica, mas representa alguns pontos para a reflexão).

 

Destacar resultados com responsáveis por tomada de decisões: Reivindicações legislativas costumam focar em mudanças técnicas e benefícios para organizações da sociedade civil e vêm com um custo adicional para os cofres públicos. Mas tomadores de decisão se importam mais com os benefícios à sociedade como um todo (assim como a capacidade de unir esforços com seus próprios projetos políticos). A falta de dados sobre impactos específicos costuma ser uma barreira (e também requer que os tomadores de decisão escutem e tenham disposição para olhar a evidência apresentada, quando está disponível). Mas, defensores talvez possam fazer um esforço maior para liderar com a narrativa que foca nos resultados.

 

Usar frameworks existentes: Todos nós precisamos de mais e melhores dados sobre como o trabalho da sociedade civil melhora as vidas no cotidiano. Há exemplos poderosos de registro do impacto da doação beneficente e do trabalho da sociedade civil como um todo. A Iniciativa Yetu no Quênia, por exemplo, coletou Histórias de Esperança de comunidades quenianas durante a pandemia. Enquanto isso, o WACSI conduziu uma pesquisa em doações locais durante a Covid-19 em Gana, observando o potencial de mobilização de recursos domésticos em Gana para lidar com a crise. Há muitos exemplos a mais por aí. Mostrar como esse trabalho contribui para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) — um framework globalmente conhecido — poderia fornecer mais oportunidades para construir narrativas comuns entre setores públicos e privados e ajudar a educar outros atores sobre o valor e impacto do trabalho que a sociedade civil está fazendo in situ. Há também colaborações entre setores existentes com o objetivo de alcançar os ODS, como o Catalyst 2030, que poderiam ser incluídos.

 

Construção de narrativa em torno de uma agenda coletiva: A colaboração entre organizações da sociedade civil tem crescido durante a crise de Covid-19, de acordo com muitas organizações com as quais falamos. Por exemplo, no Reino Unido a campanha “Never More Needed” (Nunca Mais Necessitado) reuniu uma ampla variedade de instituições beneficentes e permitiu uma coordenação melhor em torno de reivindicações comuns e mensagens mais alinhadas em direção ao governo. Quando o assunto é apoiar processos similares em outros países, disponibilizar um conjunto de princípios mínimos que podem ser traduzidos para o contexto nacional e adaptados localmente provavelmente é a melhor maneira de seguir em frente (CIVICUS está trabalhando em um conjunto de princípios desse tipo no momento). Storytelling é outra ferramenta poderosa para moldar a opinião pública, mas na maioria das vezes a linguagem utilizada para descrever o trabalho da sociedade civil não é adequada o suficiente para descrever o verdadeiro impacto que ela tem, sendo muito técnica e cheia de jargões. (E esse blog não é necessariamente uma exceção a essa regra!)

 

Novas alianças e trabalhar em parceria desde o início: A Covid-19 trouxe novos modos de colaborar e também novas alianças entre novos atores. Agora, há uma oportunidade para manter esse momentum, explorar lacunas na colaboração e expandir alianças. Para financiadores que apoiam a construção de redes, pode existir também uma oportunidade para buscar novas colaborações que emergiram durante a crise e fortalecê-las, expandi-las ou aprofundá-las com apoio adicional e financiamento (mantendo a cautela para não causar desvios na missão de redes ou colaboradores por meio de seu envolvimento).

 

Capitalizar nas mudanças no governo: Um resultado da crise poderia ser a reestruturação de governos e administrações públicas. Novas unidades poderiam emergir, trabalhando, por exemplo, em monitoramento, saúde pública e preparo em geral para crises e desastres. Elas podem representar novos pontos de entrada, ter um lugar à mesa para tomadas de decisão futuras ou destacar a importância da sociedade civil em geral. Pode existir também um foco renovado no governo local, o qual costuma se provar central na resposta à crise. Governos municipais e locais também são organizados em redes regionais e globais, sabem o valor de seu ecossistema de sociedade civil e costumam compartilhar conhecimento especializado sobre soluções pragmáticas de modos que são menos políticos.

 

Técnicas de defesa de causas e trabalhando em mudança sistêmica: O termo construção de capacidade provavelmente foi usado em excesso — mas vimos uma lacuna real na habilidade da sociedade civil local de defender causas durante a crise. Quando não havia capacidade, a sociedade civil estava em desvantagem para se certificar de que suas preocupações estavam sendo ouvidas por governos ocupados tentando impedir as economias de afundar. Frameworks e ferramentas de mudanças de sistema estão disponíveis para influenciar a percepção do governo em relação ao papel da sociedade civil na tomada de decisões e nos esforços de recuperação. Mas a sua aplicação de modo significativo exige uma forte capacidade na situação em si. Redes como a WINGS (para a filantropia) e CIVICUS (para a sociedade civil como um todo), assim como uma série de ONGs internacionais e fundações, têm trabalhado para construir ambientes capazes por anos, mas a pandemia mostrou que mais atores (que também trazem financiamentos adicionais) devem entrar (reentrar?) nesse espaço.

 

Investimentos a longo prazo e mais financiadores entrando no espaço: Financiar um objetivo muito amplo de “fortalecer a sociedade civil” é um tópico difícil de engajar — o sucesso é difícil de mensurar, investimentos precisam ser a longo prazo e conquistas são difíceis de comunicar e o trabalho pode levar a desentendimentos com governos. Financiadores como o Aga Khan e a Fundação Mott estão fazendo um trabalho excepcional nessa área. Alguns financiadores também estão tomando uma posição baseada em princípios e defendendo a proteção de espaços cívicos (mesmo quando eles não estão ativos naquele espaço com seus próprios programas). Mas há muitas lacunas diferentes com as quais os financiadores podem engajar: defender a sociedade civil, proteger o espaço cívico e financiar um ambiente favorável. Isso requer uma nova narrativa que centraliza a ideia de que a sociedade civil é um bem público, e que fortalecê-la precisa ser parte essencial da reconstrução após a pandemia.

 

Ligações com o setor lucrativo: Muitas empresas estão começando a redefinir a discussão em torno do propósito, em parte para manter sua “licença social para operar” nas comunidades. Esse é um discurso que vai além da conformidade regulatória. O engajamento com instituições de caridade e grupos comunitários como donatários ou parceiros de longo prazo é parte do foco. Mas as empresas também se beneficiarão de modo mais amplo ao serem inseridas em ecossistemas maiores que são sustentados por uma sociedade civil saudável e espaço cívico protegido, assim como uma recuperação mais robusta devido a um envolvimento melhor com a sociedade civil.

 

O papel da doação entre fronteiras: Em um relatório recente, pesquisadores da Lilly Family School of Philantropy observaram os dados de 2018 sobre o fluxo de recursos entre fronteiras vindo de 47 economias que cobrem 85% do PIB global. Eles identificaram US$ 834 bilhões vindo de quatro fluxos entre fronteiras; incluindo fluxo de saídas filantrópicos, AOD (assistência oficial ao desenvolvimento), remessas e investimento de capital privado. Fontes privadas contribuíram com US$ 658 bilhões em 2018, o que é quatro vezes a quantidade de AOD (US$ 175 bilhões). Isso inclui US$ 68 bilhões em doações filantrópicas entre fronteiras e US$ 481 bilhões em remessas. Remessas exercem um papel diferente de fundos filantrópicos. Mas os dados mostram que, quando o assunto é financiar a sociedade civil local e a infraestrutura que a sustenta, financiadores privados e indivíduos podem ser uma fonte poderosa. Reduzir as barreiras para a doação entre fronteiras é crucial nesse contexto. Governos ainda estabelecem e aplicam as regras sobre como organizações da sociedade civil podem ser configuradas, registradas, operar e receber financiamento (incluindo de doadores estrangeiros). Organizações como CIVICUS e ICNL monitoram desenvolvimentos e aferem regimes regulatórios globalmente. Mas doadores e financiadores também têm um interesse investido nas regras sendo justas e transparentes e devem apoiar esforços para manter o espaço cívico aberto e fluxos desimpedidos de doações entre fronteiras.

 

Compromissos globais para proteger o espaço cívico: Há um grande benefício em utilizar plataformas existentes e trabalhar com definidores de normas globalmente aceitos. O Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE, a Parceria para o Governo Aberto, os Rapporteurs do ACNUR, o Pacto Global das Nações Unidas, o Banco Mundial e bancos de desenvolvimento regional, a União Africana e a União Europeia — todos representam sistemas estabelecidos, processos e pontos de engajamento. Muitas organizações e redes da sociedade civil defendem causas com sucesso e podem fazer representações. Mas compromissos globais para proteger o espaço civil são raros. Instituições poderiam trabalhar mais em direção a eles, se tornar mais responsivos e dedicar recursos e fundos para as necessidades da sociedade civil. Para fazer isso acontecer, pode existir uma necessidade de fomentar “redes de redes” para unir mais atores e erguer a sociedade civil a uma posição mais destacada na agenda global. A colaboração entre setores ao redor de áreas temáticas e agendas que exigem o apoio da sociedade civil para a mudança e a implementação bem-sucedidas (como a mudança do clima) poderia ser outro meio.

 

Para onde ir a partir daqui?

 

A Covid-19 pode ser um ponto de inflexão. Daqui a dez anos podemos olhar para trás e ver esse momento como um ponto de partida para a deterioração maior da lei, do espaço cívico, dos direitos democráticos, da abertura e a proliferação de abordagens de cima para baixo na tomada de decisões. Mas o oposto é igualmente possível. Também podemos ver que o impacto da pandemia levou a um interesse internacional renovado na sociedade civil e em proteger o espaço cívico. O fim da crise poderia trazer nova motivação por parte de diferentes atores públicos e privados, novo momentum para a colaboração e novos caminhos para o engajamento. Financiadores institucionais podem exercer um grande papel nesse processo, mas doações filantrópicas em geral também terão um papel a exercer. O “menu” de opções do que pode ser investido e as ações que podemos tomar já foram bem descritos por muitos atores trabalhando na área, então agora é a hora de nos movermos e dar os passos para moldar o futuro da sociedade civil.

 

*Texto originalmente publicado no blog Giving Thought, da CAF America, em 25 de junho de 2021. Íntegra (em inglês) aqui

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