Transcrição EP#66 – Solidariedade Seletiva: o que move um doador?

Roberta : A guerra na Ucrânia choca mais que a da Síria; a morte de um estudante branco ganha mais destaque que a de um negro; as enchentes de verão mobilizam doações rápidas, mas o número de pessoas em situação de rua nunca foi tão grande. Não é preciso ir muito longe para perceber que as pessoas enxergam os problemas sociais de forma diferente e que fazem uma escolha, consciente ou não, sobre o que merece mais comoção.

Para falar sobre isso, hoje nós vamos receber a Samantha Federici, head de parcerias com o setor privado do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur.

 

Artur: Sou Arthur Louback.

 

Roberta e Artur: E a solidariedade seletiva é o tema de hoje. Aqui se faz, aqui se DOA!

 

[Sobe o som e mergulhamos no episódio]

 

Roberta: Está começando mais um Aqui se Faz, Aqui se Doa, o seu podcast semanal sobre cultura de doação produzido pelo Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, com divulgação do Infomoney. E hoje vamos falar de um assunto que pode ser espinhoso, mas que rende uma conversa bem profunda.

 

Artur: Pois é, Roberta, pra gente simplificar, aqui o tema de hoje tem um exemplo que é bem emblemático. Quando a Catedral de Notre Dame, em Paris, pegou fogo em 2019, em poucas horas, quase 1 bilhão de euros tinham sido arrecadados para reconstrução, via doações. O assunto, estava em todos os jornais. Para estimular os franceses a contribuírem, inclusive, o governo anunciou uma redução de até 75% no Imposto de Renda para quem fizesse uma doação. Mas ali mesmo, nas ruas de Paris, fazia cinco meses que as pessoas se manifestavam, ali na região mesmo por conta da crise social no país, sem nenhuma resposta.

 

Roberta: Naquela época, a gente também viu artigos e reportagens da imprensa questionando por que o incêndio na catedral gerava mais ações de solidariedade do que a passagem de um ciclone que deixou mais de 1000 mortos no sudeste da África poucas semanas antes. Claro que 800 anos de história se transformando em cinzas nos deixam comovidos e que a reconstrução de monumento histórico é importante. Mas por que será que esse tipo de tragédia gera mais comoção do que a vida de seres humanos?

 

Artur: Em uma entrevista para a Rádio Pública Nacional, um dos manifestantes franceses foi categórico: Para ele, quem tem dinheiro não se mobiliza tanto contra a pobreza porque essa causa não faz parte da vida delas, não os representa.

 

Roberta: Aqui no Brasil, entre 2017 e 2021, pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas fizeram estudos com moradores do Complexo da Maré e de bairros ricos da Zona Sul do Rio de Janeiro para identificar as diferenças de comportamento entre as classes sociais quando o assunto é doação. Um dos estudos funcionou assim: os entrevistados recebiam cinco notas de  R$2 e eram informados de que poderiam ficar com o dinheiro ou doá-lo para causas de combate à fome ou para iniciativas culturais. O que vocês acham que aconteceu? Entre os participantes do Complexo da Maré, 86% fizeram alguma doação, com valor médio de  R$5,57, sendo R$ 3,74 para alimentos e R$1,83 para ações culturais. Já na zona sul, 43% dos participantes, ou seja, menos pessoas, fizeram algum tipo de doação com um valor médio também menor, de  R$4,30, sendo R$1,28 para alimentos e R$3,02 para iniciativas culturais.

 

Artur: Bom, a tendência é se concluir que pessoas com renda mais baixa doam mais. Uma pesquisa gerou notícia por conta disso. Mas, enfim, é bom a gente dizer que é bem complexa essa questão e que definir um grupo de pobres e ricos é difícil. São grupos bem heterogêneos e bem relativos, mas é uma pesquisa interessante, não desprezível, com certeza. E a gente que lida com doação, a gente sabe que existem alguns indicativos, mesmo que, pelo menos, daí eu posso dizer, até pelos projetos da Editora MOL, de que relativo a renda, certamente dá pra gente concluir que quem tem mais proximidade com as causas sociais doou uma porcentagem maior dos seus rendimentos. E essa pesquisa no Complexo da Maré mostrou que o senso de urgência das causas entre as classes sociais é relativo. Isso define as preferências na hora de alocar os recursos. Entre uma causa básica, como o combate à fome e uma menos urgente, como a cultura ou o esporte, as pessoas da classe mais baixa reconhecem que a alimentação é mais importante, que é muito importante e tendem a doar mais para isso, ao contrário das pessoas de classes mais altas, que talvez entendam menos na pele essa urgência. Portanto, acho que diversificam mais as suas doações.

 

Roberta: A Rafa Carvalho hoje vai explicar para a gente um conceito que talvez ajude a clarear mais essas preferências. Vamos ouvir.

 

[vinheta/sineta que anuncia o glossário]

 

Rafa Carvalho:Oi, pessoal, tudo bem? Olha, se você está fazendo outra coisa, ouvindo glossário de hoje, eu sugiro que você pare só por dois minutinhos pra ter uma aula teórica  a jato. Porque o glossário de agora vai explicar o conceito de solidariedade e as formas como ela pode se manifestar. Eu sei que parece simples, mas tem um mundo para a gente mergulhar aí que eu vou levar você pela mão. Então vamos juntos! Bom, primeiro vamos para a definição do dicionário: a solidariedade pode ser definida como a comunhão de interesses e responsabilidade mútua. Mas agora, tendo isso em vista, a gente pode ir para um olhar mais sociológico também. Para o francês Émile Durkheim, que é um dos pais da sociologia moderna, dá pra entender a solidariedade a partir de dois tipos de consciência: a individual e a coletiva. Esse cara diz que cada pessoa tem uma própria consciência individual e que a combinação de todas as consciências individuais forma a consciência coletiva. Ela é quem é responsável, segundo Durkheim, pela formação dos nossos valores morais e é o que influencia as nossas escolhas. Para o Durkheim, a solidariedade nasce a partir dessa consciência coletiva. E aí a gente chega em dois tipos de solidariedade também dentro dessa consciência coletiva: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. Na solidariedade mecânica, o desejo da pessoa é diretamente influenciado pelo grupo onde ela está. Ou seja, o sentimento vai ser definido por laços familiares, religiosos, por tradições, costumes e por aí vai. Já a solidariedade orgânica nasce quando as pessoas entendem que elas são seres individuais, que se unem não porque elas têm semelhanças entre si de alguma maneira, mas porque elas se enxergam como interdependentes dentro da sociedade. Ou seja, o que eu faço influencia na sua vida e vice versa. E por isso a gente precisa se entender, para se unir. Agora, depois dessa mini aula teórica, será que você consegue enxergar o que influencia as doações que você faz ou as doações que você pede na sua organização? Dá para fazer uma reflexão bacana. Até a semana que vem, quando eu, a Rafaela Carvalho, trouxer mais um termo importante pra cultura de doação, aqui no glossário. Até lá.

 

[vinheta/sineta que anuncia o glossário]

 

Roberta: Muito obrigada, Rafa. É legal a gente trazer um pouco de teoria também, porque isso muitas vezes ajuda a gente entender de onde vem a prática. E, de fato, à medida que a sociedade muda, também muda nossa forma de pensar e agir na filantropia. Hoje, por exemplo, os millennials e a geração Z se engajam e doam para causas bem diferentes daquelas que interessavam aos seus pais e avós das gerações anteriores.

 

Artur: Exatamente. Mas ao mesmo tempo, também têm algumas causas que eram importantes lá atrás e que seguem sendo, mas que nunca tiveram muito destaque. Na área da saúde, um exemplo disso é a questão dos cuidados paliativos. Quando uma pessoa tem uma doença que não tem mais chance de cura, ou então tem um indicativo de que é uma doença que pode levar ao óbito no desencadear dela. Os cuidados paliativos são uma forma de garantir que ela tenha alguma qualidade de vida nessa trajetória. E, apesar de ser super importante, a gente pensar em aliviar os sintomas físicos e tratar das questões emocionais relacionadas a essa situação não é nem um pouco comum a gente ouvir falar de projetos relacionados a isso e muito menos ainda de doações para finalidades como essa.

 

Roberta: Mas esses projetos existem. Em 2018, o Hospital São Francisco de Assis, localizado em Jacareí, na região do Vale do Paraíba, passou a oferecer esse tipo de assistência na sua clínica oncológica, com uma médica paliativa e uma psicóloga. Com o tempo, a equipe percebeu que esse atendimento estava fazendo muita diferença na vida dos pacientes e que deveria ser oferecido mais precocemente. Foi aí que surgiu a ideia de criar um ambulatório especialmente para isso. Um projeto que foi concretizado no ano passado. A gente conversou com a psicóloga Thaís Moretti Neves, que faz parte da equipe, e ela nos contou como isso aconteceu.

 

[entra sonora]

 

Thaís Moretti: A implantação do ambulatório de cuidados paliativos aqui no hospital só foi possível a partir de doações, e nós tivemos três grandes doadores, que nós chamamos de nossos três corações. Um coração foi de uma grande amiga, que doou parte da sua herança, e essa pessoa já não está mais entre nós; o outro coração foi de um empresário aqui do município de Jacareí – esses dois corações tiveram a experiência do câncer nas suas vidas e entenderam que seria fundamental a assistência em cuidados paliativos pra todos os pacientes com doença avançada, e eles puderam viabilizar a construção do prédio que a gente tanto sonhou. Mas precisávamos de um terceiro coração, e esse coração chegou a partir do edital Cuidar Mais, com a Editora MOL e com a Droga Raia, que viabilizou o custeio da nossa equipe multidisciplinar, além de vários equipamentos fundamentais pra esse laboratório. Nós encontramos empatia nos três doadores, todos os três doadores foram empáticos e já entendiam que o cuidado paliativo é essencial pra quem tem uma doença crônica, pra quem tem uma doença avançada, e principalmente pra quem tem uma doença que ameaça a vida. Mas nós sabemos que isso não é muito comum, das pessoas compreenderem dessa forma. Mas a gente percebeu que quando se compreende, e principalmente quando se tem empatia, a gente consegue que essas pessoas se comovam, se movam, pra dar esse passo de doação.

 

Artur: Foi uma grande alegria para nós, do Grupo MOL, fazer parte da realização desse projeto tão especial. Eu estive bem diretamente envolvido nisso. Inclusive, estive lá na inauguração e foi num momento de grande emoção. Lutei bastante por esse projeto. Fico orgulhoso que ele tenha acontecido. A ideia da equipe do Hospital São Francisco de Assis é tentar que o ambulatório seja integrado à rede pública de saúde no município, mas toda doação continua sendo bem-vinda. Afinal, é bom lembrar que o hospital, como muitos, como o Hospital São Francisco de Assis, atende muitos municípios do entorno, portanto tem uma demanda que vai além dessa rede municipal. E a Thaís contou pra gente como eles esperam conseguir manter esse trabalho.

 

[entra sonora]

 

Thaís Moretti: Realmente requer um trabalho da equipe de especialistas, um trabalho grande, porque além de você ter que mostrar o serviço que você oferece, é importante que você entenda que as pessoas ainda não compreendem na sua totalidade o que é assistência em cuidados paliativos. Na nossa realidade aqui no Hospital São Francisco, o serviço de cuidados paliativos está inserido no serviço de oncologia, então a causa do câncer nos ajuda na elaboração dessas estratégias pra gente poder estimular o engajamento pra novos doadores. Uma das formas que temos de colocar público e buscar empatia, buscar esse engajamento, é o relato de casos reais, de pacientes que estamos acompanhando no ambulatório de cuidados paliativos, relatos de pacientes com câncer muito avançado, que através de uma assistência precoce em cuidados paliativos, com controle de sintomas eficaz, e com todo acolhimento de uma equipe multidisciplinar, esse paciente consegue ter uma vida com maior qualidade, inclusive voltando pro mercado de trabalho, apesar da doença avançada. Então esses relatos são uma grande estratégia, porque aí o caso é real. Quando as pessoas entendem que o paciente com uma doença avançada ele está vivo, e ele precisa continuar vivendo e convivendo com aquela doença, quando as pessoas entendem que essa assistência vai cuidar desse paciente pelo tempo que for necessário, pra que ele possa ter uma melhor qualidade de vida apesar da doença, aí a gente consegue um pouco mais de compreensão e aí a gente consegue até subir alguns degraus pras doações.

 

[sobe som marcando fim das entradas das sonoras]

 

Roberta: Bom, a Thais tocou num ponto muito importante para o nosso tema de hoje: a empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Segundo o dicionário da Associação Americana de Psicologia, a empatia por si só não implica em motivação para ajudar. Mas ela pode se transformar em simpatia ou mesmo numa angústia pessoal, o que pode resultar em ação. Já o psicólogo canadense e professor da Universidade de Yale, Paul Bloom não nega os efeitos positivos da empatia, mas ele traz uma visão mais crítica. Ele é autor do livro “Contra Empatia por uma compaixão racional” e defende que, no lugar da empatia, a gente deveria desenvolver mais a compaixão. Isso porque a empatia nos põe numa situação de total envolvimento quando nos colocamos no lugar do outro. Já a compaixão nos coloca mais como observadores e aí sim, podemos cuidar do outro em vez de se paralisar por essa dor.

 

Artur: Essa crítica do Paul Bloom é essencialmente o que a psicologia trata como empatia emocional que tem a ver com compartilhar o sentimento do outro. E aí, o que ele diz que é tendência? Quando isso acontece, a gente dá uma importância ao sofrimento de quem se parece com a gente. E muitas vezes isso acaba reforçando preconceitos e negligenciando a dor de muitas pessoas que não têm o perfil mais comum, por assim dizer.

 

Roberta: E por falar em preconceito, há outro ponto muito levantado quando se fala em solidariedade seletiva é o racismo. É como diz o professor Silvio Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”, independentemente da gente aceitar ou não, infelizmente, o racismo é algo normalizado na nossa sociedade. A sociedade naturaliza a violência contra pessoas negras. Por isso, a morte de jovens negros sistematicamente nas periferias não choca as pessoas, como a morte de um jovem branco, de uma classe social mais alta.

 

Artur: Acho que a nossa convidada de hoje vai poder nos ajudar a desenvolver mais alguns desses assuntos, Roberta. A Samantha Federici é head de parcerias com o setor privado do Acnur, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Olá Samantha! Obrigado por receber os convites. Seja muito bem vinda!

 

Samantha: Imagina, Artur, o prazer é meu. Eu sou ouvinte do podcast. Acho que todo mundo que trabalha nesse setor é. Acho uma iniciativa primorosa, muito necessária. E é um prazer estar aqui participando.

 

Roberta: Samantha pra gente começar com um assunto bem recente. A crise na Ucrânia, com a invasão russa, despertou muita atenção e solidariedade ou pelo menos posts sobre solidariedade no mundo todo. E em menos de um mês, quase metade da meta inicial de assistência financeira estabelecida pela ONU foi atingida. E, em comparação, em 2021, o financiamento para as crises na Venezuela, no Sudão do Sul e na República Democrática do Congo foi menos da metade do necessário. Na visão do Acnur, por que isso acontece assim?

 

Samantha: Tem alguns pontos. Essa crise na Ucrânia, a guerra na Ucrânia, ela foi sem precedentes, desde a Segunda Guerra Mundial, quando a gente pensa no número de pessoas que ela deslocou. Então, a primeira consideração que eu quero fazer é que esse dado de que a gente quase conseguiu financiar tudo, a gente teve que refazer as projeções, porque também a estimativa de recursos necessários para o trabalho ela foi aumentando conforme essa crise foi aumentando também. Mas é verdade, sim, que ela atraiu muita solidariedade. A gente pôde contar com um amplo espaço midiático desde que essa guerra começou. Muitos países, inclusive no Brasil e, principalmente, nas redes sociais. Então, o que a gente nota no Acnur é que, de fato, quanto mais destaque os meios de comunicação dão para uma crise, seja uma crise e conflito armado ou outra crise humanitária. Consequentemente, maior é o conhecimento sobre as necessidades e as urgências que essa crise está gerando, no caso, as necessidades das pessoas refugiadas e dessas populações que enfrentam diversas situações durante conflitos e deslocamento. Então, isso sim, é um fator. Essa cobertura é muito sem precedentes também. É uma resposta àquilo que está acontecendo. Além do conhecimento sobre o que está acontecendo e esse caráter de urgência, que é um gatilho muito importante para a doação. A gente não pode esquecer que quanto mais tangível é, mais urgente é uma necessidade, mais as pessoas tendem a doar. Sem dúvida, o espaço midiático ele favorece esse aspecto, mas esse espaço midiático também traz um estímulo para a solidariedade. Ele acaba gerando essa vontade nas pessoas de se engajar e de apoiarem causas humanitárias. Então, essa questão de você poder alcançar é sensibilizar pessoas e mesmo pessoas que nunca doaram e que passaram a se tornarem doadores. Nesse momento é bastante importante. A gente percebe que as pessoas que doam, elas sempre doam quando podem. A importância desses espaços de mídia é de trazer novas pessoas, o que é extremamente necessário, porque a situação que a gente tem é de subfinanciamento generalizadamente. A gente não tem uma situação, mesmo nesse caso confortável e que atenda plenamente a necessidade.

 

Artur: O Acnur publica todo ano um relatório indicando quais são as situações mais negligenciadas financeiramente, pelo menos, no mundo. Na última edição, que foi lançada em setembro último, mostrou que as áreas de atuação do Acnur menos financiadas são aquelas relacionadas a serviços essenciais e necessidades básicas. Eu queria que você comentasse um pouco. Certamente você não tem uma resposta definitiva sobre isso. Mas, ao mesmo tempo, na sua resposta anterior, você falou que as causas urgentes são as que atrai mais doações, mas ao mesmo tempo, os serviços essenciais e básicos recebem menos. Por que você acha que tem esse descompasso?

 

Samantha: Então eu não sei se a gente pode afirmar que, necessariamente, serviços essenciais ou necessidades básicas, são menos financiadas. Quando a gente olha, é onde está a maior demanda. Então é em valor absoluto aquilo que é mais financiado. A questão é que é tão maior do que outras áreas de atuação que você acaba, ainda assim, não conseguindo financiar proporcionalmente como outras. Essa análise que a gente faz, a conclusão que a gente tira certamente é que, como eu ia dizendo, não importa qual é a área, ela é subfinanciada, mesmo aquela que costuma ser a que mais desperta a atenção das pessoas. Então, acho que esse é o principal ou a principal conclusão deste relatório. E dá um indicativo de que em todas as áreas onde não existe nenhuma iniciativa, nenhuma a área que ela é plenamente financiada. Agora tem uma questão que, acho que, talvez responda em parte a sua pergunta. Esse relatório, o que ele faz? Ele pega todas as emergências e faz um recorte, junta. E são emergências, cada uma de um tamanho, cada uma com uma necessidade de financiamento. E mostra isso a partir das áreas de atuação. Então, tem muitos fatores que estão se sobrepondo. Muitas coisas estão inter-relacionadas. Seja a fase da emergência, então emergências que acabaram de eclodir tem maior necessidade desses serviços essenciais e necessidades básicas do que uma outra que já está numa outra fase. A gente tem questões de logística e distribuição, que são importantes para questões também de serviços essenciais e necessidades básicas. Então é tudo muito interligado para a gente poder ter uma resposta de por que que essa tem menos apoio. Na verdade, ela está sendo a mais apoiada que ela é muito maior. Mas, como eu ia dizendo, a necessidade básica é essencial. Os serviços essenciais estão ali, que é aquilo que é necessário para manter a vida. Então, é na hora que está acontecendo ou no início ou em situações de extrema vulnerabilidade. É aquilo que é o primeiro. Uma vez que você satisfaz essa situação que você, no caso de um refugiado, é assim, é o momento que ele está na jornada ali, fugindo de um bombardeio, com a sua vida em risco, cruzando uma fronteira onde ele deixa de ser um cidadão de uma nacionalidade e passa a ser uma pessoa que perde os direitos e ele não tem a condição de refugiado reconhecida. É aí que a gente está falando das necessidades básicas. Uma vez que você tem o refugiado com a situação reconhecida. E essa é a parte do trabalho que o Acnur faz não somente oferecer apoio emergencial, mas ajudar na questão da documentação para que essas pessoas que são forçadas a se deslocar possam vir a se tornar um refugiado com direitos para que as crianças possam ficar na escola, para que as pessoas consigam arrumar trabalho e começar a sua vida. E aí essa parte ela tem um caráter maior de conseguir virar uma página e dali garantir a inserção econômica, a partir da qual a pessoa tem mais autonomia e independência. Então, tem esse fator também que, dependendo do tipo de financiador, pode ser mais atrativo você falar sobre empoderamento, sobre inserção econômica e sobre outras questões.

 

Roberta: E Samantha, pra meter a mão no vespeiro mesmo. A gente ouviu muitos comentários durante a cobertura e ainda ouvimos que mostram um racismo desvelado. De ouvir comentaristas dizendo “mas são gente como a gente: são loiros, cristãos, de olhos azuis”. A gente viu isso na cobertura americana, na cobertura europeia. Na experiência do Acnur é mais fácil mobilizar a atenção e recursos quando você pede para pessoas que se parecem culturalmente com você, em comparação a pedir apoio para culturas muito diferentes, por exemplo, para guerras que acontece em países que têm outra religião ou pessoas que são de outra raça, ou se tem outras diferenças do tipo, é mais fácil pedir em campanhas que envolvem crianças, afetam crianças, do que que afetam populações em geral. Como você enxerga isso na experiência do Acnur?

 

Samantha: Olha, a gente não pode afirmar que questões de diferença étnica ou religiosa possam significar maior ou menor financiamento. A gente teve no ano passado a crise do Afeganistão e ela teve uma cobertura midiática bastante grande. E até hoje você tem uma grande comoção e um despertar de solidariedade em relação a isso. Então, não acho que seja possível. Do ponto de vista do Acnur, o que a gente acredita é que realmente, possíveis discriminações ou diferenças em relação a emergências elas vêm da falta de informação. E nesse sentido, a cobertura midiática tem um papel importante de mostrar ali e de poder trazer para as pessoas normais, como eu e você, o que é a situação que é aquela outra pessoa, independente do lugar onde ela está, da nacionalidade e da situação econômica, está vivendo. Porque é uma questão, não quer dizer, não interessa a situação econômica, se acontece uma situação de emergência, todo mundo vai perder o que construiu, vai se ver numa situação nova. Então, do ponto de vista do Acnur, a gente não pode afirmar isso. Não é o que a gente observa. Por outro lado, a gente observa sim que, por exemplo, quando existem questões com populações em maior vulnerabilidade, a tendência é sim que as pessoas se comovam mais e que isso sirva para ampliar a consciência da doação e estimular a doação. Então, seja criança. Que é uma situação mais frequente do que a gente gostaria. Em questão dessas emergências todas humanitárias, porque você acaba vendo e é comum famílias que tenham que se separar em conflito, que pessoas sejam mortas, às vezes pai de família, às vezes membros da família. Então são situações muito trágicas. E na maioria das vezes, as pessoas não têm consciência. Essa crise da Ucrânia, eu acho que ela exacerbou um pouco essas coisas em função da escala que ela tem de ser uma coisa tão massiva e reforçar e trazer essa visibilidade para essas situações que não são únicas, que a gente precisa ampliar a visibilidade do que está acontecendo e trazer isso para que mais pessoas possam saber da situação e poder ajudar. A gente vê que, por exemplo, aqui do nosso lado que pode ser a gente.

 

Roberta: E Samantha, para concluir, trazendo esse ponto que você falou, como renovar o interesse e as doações quando o conflito se estende? A gente tem aí o Iêmen está indo para 11 anos, a Síria 11 anos também. Os dois são de 2011, o início das guerras. A Ucrânia está completando dois meses e, como você falou, esperamos que daqui um ano já esteja sendo feita a reconstrução e não mais a guerra. Mas às vezes isso os conflitos perduram. E aí, como você renova o interesse pelo tema, quando a mídia deixa de cobrir, porque já não é novidade e ao mesmo tempo você renova as doações para que elas deixem de ser pontuais e esses doadores que estão agora experimentando esse surto de solidariedade possam se tornar doadores recorrentes. Você tem algumas dicas que, no fim, acabam servindo para todas as causas que têm o desafio de criar doadores recorrentes?

 

Samantha: Uma das coisas que é muito importante para qualquer organização que trabalha no humanitário é a gente realmente aproveitar todas essas pessoas que descobriram a organização nesse momento de maior visibilidade e conseguir convertê-las para outras modalidades de doação. Doações regulares, doações irrestritas. Porque tem isso também? Parte da questão do problema de financiamento é que você acaba tendo doações restritas ou doações semi restritas, ao invés de restritas. As irrestritas seriam aquelas que não vão ter uma situação específica, elas vão para aqui a gente comprar um fundo e que a gente consiga ir dosando ali, dependendo da necessidade, que é a mais importante naquele momento, que vai mudando também conforme o tempo vai passando. Mas nem todos os doadores, principalmente doadores institucionais, esses são os que mais acabam doando para projetos específicos para causas específicas, seja porque têm restrições de diretrizes de políticas de intenções que não permitem que você doe de maneira irrestrita. Enfim, são principalmente doadores institucionais. É muito raro que eles doem de maneira irrestrita. E você tem doadores individuais que acabam também quando têm uma emergência, que é 100% restrita, ou acabam se mobilizando. Mas aí é aquela situação. É uma doação restrita e é uma doação pontual. Então existe um trabalho muito grande, tanto com institucionais quanto principalmente indivíduos, que é como é que a gente migra esse doador que teve esse primeiro contato para poder ajudar outras emergências e de maneira mais regular. É um trabalho que todas as organizações devem ter, é difícil. Na verdade, essa questão de ambiente para doação vocês estão até mais acostumados, talvez até do que eu, de ouvir as pessoas falar. Mas assim a gente vive num país que institucionalmente não favorece a doação. É uma coisa bastante difícil. Então, a gente, enquanto organização e todas as outras, têm as mesmas dificuldades de como a gente consegue estimular mais esse ambiente de doação. Mostrar para as pessoas a importância de apoiar regularmente. Ter mecanismos que favoreçam, que estimulem esse tipo de doação de maneira mais ampla.

Artur: Muito bom. Conversa longa. Tá convidada a voltar outras vezes. Não deu para a gente falar, vai ter que voltar, mas agora a gente vai pra rodada relâmpago, que é a hora que a gente tira um pouco de peso e fala mais daquele papo mais comezinho.

Roberta: Vamos lá. São cinco perguntas rapidinhas que você responde a primeira coisa que vem à cabeça. Número um: qual foi a sua doação mais recente?

Samantha: A minha doação mais recente foi uma doação pontual para um instituto que cuida de micos e eu acabei doando.

Artur: Qual é a sua causa pessoal do coração, Samantha?

Samantha: Olha, tem muitas assim. Eu acho que eu me sinto privilegiada. A gente não falou da minha trajetória, mas é a segunda vez que eu estou trabalhando com refugiados. Eu já trabalhei no Greenpeace com questões de meio ambiente. Já trabalhei na Plan International, com questões de crianças e adolescentes e todas essas causas são causas que me mobilizam. O que eu talvez possa dizer aqui, onde eu ainda não trabalhei e que me mobiliza é a questão da proteção animal.

Roberta: O que você doa e que não é dinheiro?

 

Samantha: Eu doo o conhecimento, energia, os meus espaços. Eu doo esperança, esperança. Aliás, a gente, a gente precisa de muita esperança.

 

Artur: Samantha, cita uma organização ou projeto que você admira ou apoia e é pouco conhecida

 

Samantha: Olha, elas vão ser todas que são bem pequenas e que são causas mais nesse setor de animais mesmo. Então tem uma organização que eu ajudo bastante, que é a Adote um Gatinho, enfim, a primeira organização aí que começou a lidar com essa questão, que é bastante pequena e como ela, outras tantas aí que são minúsculas assim, que fazem tudo na base de voluntariado. São organizações com recursos previsíveis e regulares. Geralmente não contam com nenhuma fonte, garante.

 

Roberta: Pra encerrar, queria que você dissesse algo para alguém que ainda não doa. Como você convenceria essa pessoa a doar?

 

Samantha: Olha, eu acho que se a gente parar para pensar, cada um no que tem que pensar quanto que tanta gente não tem, sempre a gente consegue ajudar alguma coisa. Então, o que eu costumo dizer que convence é R$10, R$50, não vai mudar a sua vida, mas vai mudar a vida de alguém. E é isso que eu acho que as pessoas precisam pensar, sabe? E trazer para o dia a dia, porque às vezes a gente fala não, eu não posso. Mas o que é poder no poder? Acho que a gente sempre pode fazer um pouco mais, né? E, mesmo que não possa sempre qualquer ajuda para quem está precisando, para essas organizações, nenhuma é plenamente financiada, trabalham em condições muito adversas, então qualquer ajuda é bem vinda.

 

Artur: Perfeito Samantha, fantástico papo. Reitero aqui o convite pra você voltar mais vezes e trazer pautas. Porque, enfim, vocês são uma organização que, além de ter pauta sempre, a gente tem como referência aqui o que vocês dizem e é uma ordem pra gente.

 

Samantha: Imagina!

 

Roberta: Muito obrigada. Foi incrível!

 

Samantha: Prazer é meu! Contem comigo para futuras participações em diversos temas. Aí, se eu puder ajudar, vai ser um prazer!

 

RobertaMuitas reflexões importantes hoje, Arthur. eu vou ter que me tornar doadora recorrente do ACNUR, coisa que eu não fazia. Eu só tinha doado para campanhas pontuais deles.

 

Artur: A intenção do programa é isso, jogar luz sobre algumas organizações e assuntos para as pessoas se envolverem mesmo, foi tão bom que o tempo voou e a gente já chegou aqui no nosso quadro do destino Duda Schneider, o Merchan do bem. Fala aí, Duda!

[vinheta/sineta que anuncia o Merchan do Bem]

 

Duda: Oi gente! Eu sou a Duda Schneider e esse é o nosso quadro Merchan do Bem. Uma causa que vimos ganhar mais destaque nos últimos tempos é a da dignidade menstrual. E ainda bem, já que a pobreza menstrual é um problema muito sério e real, não só no Brasil como em diversas comunidades do mundo. Para melhorar essa realidade, a Korui, marca brasileira de produtos menstruais, construiu uma mecânica para facilitar o acesso aos seus produtos. A cada dez coletores vendidos, um é doado para a comunidade em necessidade dentro do projeto Dona do Meu Fluxo, que eles criaram junto com a Raízes. Além do coletor, o projeto leva também para a comunidade visitada instruções de uso, conhecimento sobre empoderamento, sexualidade e autoconhecimento em rodas de conversas super acolhedoras. Ao todo, já foram mais de 1.200 coletores doados para mais de 21 comunidades. E, não à toa, a Korui é uma Empresa B certificada e possui várias outras iniciativas incríveis em sua cadeia de produção. Demais, né? Para conhecer mais, acesse o site korui.com.br. Espero que tenham gostado e até a próxima!

 

[trilha sonora volta para bate papo final e encerramento]

 

Roberta: Bom Artur, e o que a gente aprendeu no dia de hoje? Para mim, o principal é que eu tenho que olhar para as doações que eu faço e pensar porque eu as faço. De fato, muitas das causas que eu escolhi para mim, para minha vida, organizações que eu apoio são por similaridade com meus valores, minhas experiências, minhas questões individuais. De fato, é difícil para mim doar para causas que estão mais distantes da minha realidade, no que se inclui, inclusive a Ucrânia, que foi uma causa para a qual eu não doei, ainda, porque me parece distante, mesmo com outras tantas guerras. Eu queria até lembrar isso também. Quando a gente surgiu essa pauta, eu fui procurar e existe só para lembrar neste momento, 60 conflitos armados ao redor do planeta, incluindo quatro guerras que já têm mais de 10.000 mortos cada, no Afeganistão, na Etiópia, no Iêmen e no México. Na Síria já foram 11 anos de guerra. Outras tantas e diversos pontos da África. E uma na nossa fronteira, aqui na Venezuela. Sem falar da própria guerra civil, que é a vida urbana no Brasil e em vários lugares. Então é difícil doar para longe do Brasil. Para mim ainda. E para você?

 

Artur: Pra mim. Enfim, também acho que definitivamente a gente tem que tratar do nosso bairro para depois ganhar o mundo. Então, se a gente tem problemas urgentes aqui, eu sempre vou achar que se a gente não fizer pelos nossos, quem fará? Mas eu acho que tem uma coisa que é importante a gente levantar aqui. É um tema, talvez para outro programa e tudo mais. A gente tem que entender que solidariedade é algo que é racional até certo ponto, mas é, antes de tudo, uma ação política e identitária. A gente doa para mostrar para o mundo quem a gente é e para a gente mesmo ou para os que estão bem próximos da gente. De certa forma, é parecido com uma escolha que a gente faz da roupa que a gente usa, o carro que a gente dirige, o livro que a gente leva debaixo do braço no festival de cinema, obviamente mal comparando. Mas é uma forma de expressão. Então, de fato, reforço aqui a importância dos veículos de comunicação para jogar luz sobre as realidades e, daí sim, os veículos de comunicação eu acho que tem que ter o objetivo supra patrocinador e supra leitores e tudo que é jogar luz sobre as questões de conflito que existem em todos os lugares, para que as pessoas tenham acesso às informações e, portanto, se engajem e se expressem.

 

Roberta: Bom, Artur, muitos temas para refletir. E você já tinha pensado sobre tudo isso que a gente conversou hoje? Conta para a gente lá no nosso Instagram @institutomol ou no nosso perfil do LinkedIn e compartilha nas suas redes que assim mais pessoas entram nessa conversa. Porque no fim, como a Samantha falou fora do ar aqui pra gente, a questão não é dividir o bolo com mais pessoas, mas sim aumentar o bolo para mais causas.

 

Artur: É isso aí. Semana que vem estamos de volta. Se deixasse, a gente faria um programa aqui de três horas hoje. Esse podcast é uma produção do Instituto Mol, com apoio do Movimento Bem Maior, do Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do InfoMoney. Esse episódio teve produção da Mônica Herculano. O roteiro final e direção são da Júlia Cunha e da Vanessa Henriques, a arte da Glaucia Ribeiro, todos do Instituto Mol. As colunas são da Rafa Carvalho, da Duda Schneider, da Editora MOL e a edição de som e do Bicho de Goiaba Podcast. Ufa! É isso.

 

Artur e Roberta: Até mais!

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