Transcrição EP#67 – Como atrair grandes doadores?

Artur: Faz algumas semanas, uma notícia agitou o Terceiro Setor: a bilionária Mackenzie Scott doou mais de  US$3,8 bilhões para 465 ONGs ao redor do mundo, incluindo 16 brasileiras. Mackenzie é uma das signatárias do “Giving Pledge”, pacto liderado por Bill e Melinda Gates e Warren Buffett, para encorajar as pessoas mais ricas do mundo a doarem sua fortuna ainda em vida. No Brasil, até agora apenas dois casais, Elie e Suzy Horn e David Vélez e Mariel Reyes, todos eles imigrantes, não nascidos no Brasil, mas atuando aqui, assinaram o pacto. Mas esse tipo de notícia parece começar a incentivar uma ampliação da conversa, não apenas sobre doação de pessoas físicas milionárias ou bilionárias ou multimilionárias, mas também de grandes corporações.

E a gente vai dar a nossa contribuição para esse debate hoje, em um papo com Mariana Almeida, superintendente da Fundação Tide Setubal.

Eu sou Artur Louback.

Roberta: Eu sou Roberta Faria.

Artur: E como atrair grandes doadores é o tema de hoje no… 

Artur e Roberta: Aqui se Faz, Aqui se Doa!

Artur: Está começando mais um Aqui se Faz, Aqui se Doa, o seu podcast semanal sobre cultura de doação produzido pelo Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do Infomoney. 

Roberta, a gente sabe que a desigualdade social e de renda é um problema no mundo inteiro, mas no Brasil esse problema é especialmente terrível. O abismo entre os ricos e pobres é ainda maior e não sou eu quem estou dizendo isso,  os dados comprovam que ele é gigantesco. Dados de um estudo lançado mundialmente no final de 2021 pelo World Inequality Lab (Laboratório Mundial de Desigualdades ) aponta o  Brasil como “um dos países mais desiguais do mundo” e diz que a discrepância de renda no país “é marcada por níveis extremos há muito tempo”. 

Para se ter uma ideia, a metade da população brasileira mais pobre  ganha 10% do total da renda nacional. Na prática, isso significa que os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que recebem os 10% mais ricos no Brasil. É até difícil de falar esses dados. O documento inclui, ainda, uma análise sobre o impacto da pandemia de covid-19, que exacerbou o aumento da fatia dos bilionários no total da riqueza global. Ou seja, como dizia o poeta: o de cima sobe e o de baixo desce. 

Roberta: Pois é, Artur. Segundo a Oxfam, em um dado um pouco mais anterior a esse, o Brasil é o segundo país mais desigual do mundo, só perde para o Catar, que é uma monarquia. E é nesse contexto que a filantropia aparece como uma forma de dar vazão a essa concentração de recursos nas mãos de poucos, contribuindo para diminuir a desigualdade e fortalecer a democracia e o terceiro setor na busca por soluções para os problemas sociais, que, como sabemos, são muitos e afetam a todos, inclusive, os ricos.  E parece que os brasileiros estão começando a entender mais a importância disso e valorizar mais a doação. 

 

De acordo com a Pesquisa Doação Brasil 2020, coordenada pelo IDIS e realizada pela Ipsos, 91% dos brasileiros entendem que todos devem participar das soluções dos problemas sociais; 74% acreditam que as ONGs são necessárias para ajudar a resolver as questões socioambientais; e 60% concordam que a maioria dessas organizações faz um trabalho competente. Todos esses números cresceram com relação à edição anterior da pesquisa. Um dos poucos efeitos positivos da pandemia, de valorizar o terceiro setor. 

Artur: Bom, a gente sabe que se engajar e doar são fundamentais para que essa atuação tão importante continue. Estamos aqui toda semana justamente para ajudar a disseminar a cultura de doação no Brasil, o que sabemos que ainda é muito incipiente e está engatinhando, se a gente olhar para outros lugares que tem a economia parecida, um volume de dinheiro parecido com o do Brasil. Por isso mesmo que iniciativas como a doação da Mackenzie Scott e o The Giving Pledge fazem com que o assunto apareça mais na pauta e, consequentemente, desperte a atenção de mais pessoas para isso.

Artur: Com certeza. Por enquanto, a maioria desses exemplos têm vindo do hemisfério Norte, mas por aqui a gente também começa a ver algumas iniciativas. Com a pandemia da covid-19, por exemplo, a gente viu muita mobilização de empresas e cidadãos brasileiros com mais recursos fazendo grandes doações. De acordo com o Monitor das Doações, os 10 maiores doadores privados brasileiros para ações contra a covid-19 destinaram mais de R$ 3,2 bilhões. Entre eles estão nove grandes empresas e a família Moreira Salles, que sozinha doou R$ 100 milhões.

Artur: Parabéns, família Moreira Salles!, by the way.  

Roberta: Lembrando que a família Moreira Salles é dona do Itaú e os lucros deles atingem bilhões trimestralmente. 

Artur: Segundo o Censo Gife, em 2020 houve um aumento de 71% no volume de investimentos dos seus associados em relação a 2019. O Gife, pra quem ainda não sabe, é uma associação que reúne os principais investidores sociais privados do Brasil. Juntando esses associados com as organizações que responderam ao Benchmarking do Investimento Social Corporativo (BISC), realizado pela Comunitas, foram quase R$ 7 bilhões investidos em ações socioambientais em 2020. E o que teve grande peso nesse volume de recursos foi justamente a doação de valores extremamente altos para ações de combate à covid.

Roberta:  Outro dado interessante de destacar é que, apesar desse montante ter vindo de poucas organizações que fizeram doações muito grandes, como é o próprio Itaú que doou mais de R$ 1 bilhão, ele veio principalmente da mobilização de novos recursos, ou seja, para além daqueles que já estavam previstos para serem investidos em 2020, antes da pandemia pegar todo mundo de surpresa. Ou seja, se tirou dinheiro de outro lugar. Tem dinheiro a mais para doar dentro das empresas, fundações e indivíduos com grandes fortunas. E também veio de diferentes fontes, sendo 54% de empresas, famílias ou indivíduos mantenedores. 

Roberta: Grandes problemas requerem grandes ajudas, né? E embora a gente saiba que toda e qualquer participação faz diferença, e incentive todo mundo a doar o que puder, não podemos negar que quando alguém mais abastado ou uma grande empresa se dispõe a apoiar uma causa, a resposta chega mais rápido e com mais impacto. Afinal, quando se fala em doação, se fala em cifras. E realmente, a gente quer a participação de todos, é importante que todos participem até para termos uma mudança cultural, mas o valor faz a diferença. 

Roberta: Verdade, Artur. E acho que agora é uma boa hora para chamar a Rafa Carvalho, que hoje vai trazer pra gente um conceito que tem tudo a ver com essa participação do setor privado na solução de problemas sociais. Diga lá, Rafa!

Rafa Carvalho: Oi, pessoal! Tudo bem?

Hoje eu vou falar sobre Investimento Social Privado. Esse conceito surgiu em meados dos anos 1990, criado por um grupo de executivos e líderes de empresas, fundações e institutos, para definir uma maneira de atuação social do setor privado que buscava se diferenciar das formas mais tradicionais de filantropia. 

Essa definição se insere num contexto daquela época, quando passamos a ter um fortalecimento da sociedade civil organizada e um aumento das expectativas com relação ao papel das empresas no desenvolvimento do país, para além de suas funções tradicionais de geração de empregos e distribuição de lucro.

No começo dos anos 2000, além de diferenciar o investimento social das empresas das práticas assistencialistas da filantropia tradicional, o termo também passou a marcar com mais clareza o espaço desse tipo de ação dentro da Responsabilidade Social Empresarial. 

Pra ficar mais claro, te convido a fazer um exercício de imaginação. Imagina um guarda-chuva. Agora imagina que esse guarda-chuva representa a Responsabilidade Social das empresas, e que cada dobra do guarda-chuva é um público com o qual essas empresas precisam se relacionar. Então a gente tem, por exemplo: colaboradores, acionistas, fornecedores, consumidores, governos, comunidade… O Investimento Social Privado está justamente na parte do guarda-chuva que diz respeito à comunidade. 

Hoje, a definição usada pelo GIFE, grupo de institutos, fundações e empresas referência no tema, é: “investimento social privado é o repasse voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais, ambientais, culturais e científicos de interesse público”. 

Nesse universo estão incluídos: empresas, fundações e institutos de origem empresarial ou criados por famílias, comunidades ou indivíduos. Essas organizações podem desenvolver projetos próprios, apoiar projetos de terceiros ou fazer as duas coisas. 

Eu sou a Rafaela Carvalho e toda semana ajudo a desvendar um termo importante para a cultura de doação. Até mais!

Artur: Muito obrigado, Rafa! Bom, como a gente estava dizendo, a pandemia da covid-19 gerou uma forte mobilização e fez com que as grandes doações, vindas de empresas e cidadãos com mais recursos, crescessem muito em 2020 no Brasil. Mas será que dá pra ter esses montantes mais significativos de forma mais regular? Será que ações como a da Mackenzie Scott, que a gente falou no início do episódio, podem ser um bom modelo a seguir?

Roberta: Então, Artur… Aqui no Brasil, as organizações que ela apoiou tratam de temas estruturais e recorrentes, e acho que não tem como duvidar que esse dinheiro vai fazer muita diferença e ajudar muita gente. Mas surgiram alguns questionamentos, especialmente porque ela não tem uma fundação ou instituto que organiza e dá total transparência ao processo de seleção dos projetos para os quais ela doa, é uma questão bastante pessoal. Por conta dessas cobranças, ela acabou escrevendo uma declaração pública, dizendo que ainda neste ano deve lançar um site onde vai compartilhar todas as informações sobre o processo de escolha e destinação dos recursos. Todo mundo quer saber, porque todo mundo quer morder um pedacinho disso também, né? 

Artur: A transparência e a consequência dessas grandes doações são temas abordados de maneira mais crítica pelo David Callahan, autor do livro “The Givers” e fundador do site Inside Philanthropy, que trata de como e por que grandes doadores destinam recursos para causas sociais. Ele diz que os grandes doadores geralmente têm boas intenções, e que é importante ter liberdade para destinar seu dinheiro às causas que mais lhe interessam, mas isso pode gerar uma influência desproporcional sobre a vida pública.

Roberta: Ele fala de uma maneira muito interessante que a filantropia tem se tornado um quinto poder nos Estados Unidos. A gente fala que tem os três poderes: temos a mídia, que é o quarto poder e a filantropia estaria se tornando o quinto, porque por meio de doações, grandes fortuna, podem acabar influenciando decisões públicas, por exemplo, a Mackenzie Scott é conhecida pelo viés de políticas progressistas e apoia organizações que trabalham nesse âmbito, em questões como por exemplo Direitos Humanos, feminismo, entre vários outros, ao mesmo tem também a corda que estica do outro lado, com grandes doadores fazendo grandes doações para questões mais conservadoras, por exemplo, o armamento da população. Então, há questões bem polêmicas para entender sobre como o dinheiro doado influencia decisões políticas. 

Eu bati um papo bem legal com o David Callahan no ano passado, em que ele desenvolveu essa ideia e fez outras críticas como o fato de muitos dos doadores do Giving Pledge, por exemplo, terem assinado o documento, mas de fato doado muito pouco das suas fortunas até agora. Vale conferir lá no canal do Instituto MOL no YouTube. Tá lá disponível pra você ver, com legendas em português. 

Mas antes, fica aqui mais um pouquinho, porque chegou a hora da gente conversar com a nossa convidada de hoje, que é a Mariana Almeida, superintendente da Fundação Tide Setubal. Seja muito bem-vinda, Mariana! Obrigada por ter aceitado nosso convite!

Mariana: Obrigada você, por me receber aqui. 

Roberta: A gente começou o programa falando sobre a recente doação bilionária da Mackenzie Scott, que incluiu 16 organizações brasileiras. Ano passado ela tinha feito uma outra doação gigantesca, e na ocasião escreveu um texto no Medium dela, em que falava sobre humildade em reconhecer que a riqueza está concentrada em um pequeno número de pessoas e que as soluções para os problemas sociais seriam melhor projetadas e implementadas por quem está dentro das comunidades, por isso ela estava destinando aquela enorme quantia para organizações que em geral não conseguem muitos recursos. Muitas organizações bem desconhecidas do público que foram beneficiadas. Já existia uma conversa sobre esse tipo de ação aqui no Brasil? Essa iniciativa de alguma forma deve incentivar que a pauta das grandes doações se amplifique por aqui?

Mariana: Bom, acho que a situação de doação de parte das grandes fortunas do Brasil sempre foi bem diferente dos Estados Unidos, nesse sentido acho que é até difícil de comparar as coisas. Agora o que eu acho que pode chacoalhar também no Brasil, é que mudou muito a noção de doação e a noção também de como a gente encara uma coisa que é fundamental, que você falou, que é a desigualdade, a partir da pandemia. Eu acho que a pandemia, ela deu uma chacoalhada geral nessa questão, não só porque ficou muito claro a diferença que foi encarar, por exemplo, que afetou todo mundo, mas bem diferente para quem estava nas piores condições e isso ficou muito óbvio para quem não via antes, acho que isso ficou muito forte na pandemia. 

Roberta: É, a mesma chuva, mas não é o mesmo barco…

Mariana: Isso, exatamente. A mesma chuva, mas não foi o mesmo barco e acho que isso sensibilizou muito as pessoas, né? A pandemia ela traz um senso de coletivo muito importante e que todo mundo pega, né? todo mundo passa, mas acho que tem essa noção do coletivo mas cada um fazendo de um jeito diferente, mas com responsabilidade, em geral. Então acho que essa questão a pandemia trouxe a questão da desigualdade e trouxe a outra história, que é a importância dos governos reagirem, ficou óbvio que ele tem de dar auxílio para todo mundo, é o governo que tem como, que tem recursos para apoiar todo mundo, mas ao mesmo tempo o governo demora um pouco, ele erra um pouco, ele tropeça e como foi importante  a mobilização toda da sociedade civil e das doações individuais. Em algum momento, ele puxa um carro, cumpre um papel e eu acho que isso apareceu. Está aparecendo e ficou, e acho que nunca volta para trás, então não vejo mais o Brasil nesse lugar de como era antes e acho que pode sim, mobilizar as grandes fortunas brasileiras que, a princípio não estão acostumadas a fazer nada perto desse tipo de doação, mas quem sabe? 

Roberta: A gente sabe que entre os grandes doadores e investidores sociais brasileiros, ainda há muita execução de projeto — ou seja, uma preferência por criar um instituto próprio e executar uma ação que talvez outra organização mais estabelecida pudesse fazer tão bem quanto ou até melhor. Ultimamente essa chave está começando a virar, pensando também numa filantropia orientada para a confiança nas OSCs, com menos recurso carimbado e mais apoio institucional como um todo. Como você enxerga esse cenário de grandes doações no país? Tá mudando mesmo?

Mariana: Possibilidade de mudar, mas ainda não mudou. Ainda está parado, digamos assim. Eu vejo que não temos mais a total desconfiança que era antes, mas ainda não existe a confiança. É interessante porque, no campo da filantropia, quando você pensa qual o papel da filantropia, por que ela existe? Eu tenho o Estado que tem uma função pública por si só, eu tenho o setor privado que tem uma intenção privada, que investe aquilo com uma intenção específica, que é o retorno e tal. A filantropia, ela é a menos pressionada de todos. Ela não tem uma função, ninguém elegeu a filantropa, não precisa ter faturamento, não precisa ter lucro. Se ele tem esse lugar, onde ele não é pressionado, ele deveria ser um pouco mais livre. Ele é o cara que pode arriscar. E a filantropia brasileira é tradicionalmente muito avesso ao risco. “Eu tenho pouco dinheiro, então eu tenho que fazer no melhor projeto, na melhor história”, uma preocupação com o retorno, quase que está trazendo uma lógica privada para filantropia.

Roberta: Uma lógica privada, a gente sempre fala disso aqui no programa, essa lógica das métricas muito corporativas…

Mariana: Você que tem de gerar ativo. Então, o ativo é justamente poder arriscar, você tem tempo para poder arriscar. Se a filantropia errar e investir mal, o que vai acontecer? Você não vai perder faturamento, você não vai perder, você vai aprender inclusive com aquilo. Se alguém pode aprender com o erro, esse alguém é a filantropia. Faz um bom relatório do seu erro depois, “olha, eu investi aqui e deu muito errado, por isso”, e tem a chance de acertar, tem a chance de, se você arriscar um pouco mais, talvez você se surpreenda, e alguém tem de cumprir esse papel  de poder se surpreender e a filantropia brasileira ainda dá uns tropeços em relação a isso. Na pandemia, a gente trouxe uma questão: como ajudar na pandemia? e é claro, a fome, a falta de alimentos, é óbvio que isso é uma grande questão, mas acho que é super importante ouvir o que as pessoas precisam, porque às vezes elas vão poder escolher também. A escolha, o ato de escolher, ter a autonomia de pegar um recurso e alocar o recurso da melhor maneira, isso também é um processo formativo. Quando você faz um apoio um pouco mais flexível, você também está dando esse item adicional, que é silencioso, mas que é muito importante que é a confiança e ao mesmo tempo a autonomia. 

Roberta: A doação da Mackenzie Scott também foi muito comentada por não fazer nenhuma exigência sobre de que maneira o dinheiro deve ser usado, o que abre espaço para que as organizações consigam, por exemplo, cobrir despesas fixas como estrutura administrativa, equipe, comunicação… que nem sempre podem ser cobertas quando captam recursos de outra forma, que é um recurso, bem como a gente diz, já carimbado, que tem de ir para o projeto, para a ponta. Quais são os prós e contras de doar dessa maneira, que se vê menos recurso destinado estritamente para a ponta, como nos investidores sociais costumam gostar de ver e dizer que querem que seu recurso seja aplicado?

Mariana: Bom, com entusiasmo que sensibiliza a doação nesse sentido, de dar autonomia ao agente que está disposto a agir socialmente, talvez mais tenha mais “prós”. Talvez contra, seja que se você não acompanhar sempre, de ver para onde foi o recurso, você pode deixar de aprender coisas importantes. Não para criar uma nova camisa de força, mas para você aprender o que está acontecendo, então dar autonomia não significa não ter informação sobre o que está sendo feito, é uma coisa diferente. As pessoas acham que é “livre total”. É livre para fazer a escolha, mas você pode acompanhar, você pode e deve acompanhar para aprender mais e ensinar a outros, para poder passar como experiência, não necessariamente como obrigação, mas como experiência. Essa seria uma primeira questão; a outra questão é o que é o recurso na ponta? A gente vê como, boa parte das políticas bem sucedidas tem a ver com a pessoa que faz a conexão com o beneficiário final. O trabalho das pessoas é importante, a conversa, a assessoria, o trabalho ali no meio não é custo. A gente ouve: “custo de RH”, parece que é aquela coisa chata, que fica no meio do caminho, uma burocracia, mas e a pessoa? mudar as coisas da operação significa a valorização de um determinado funcionário, de uma pessoa que está disposta a fazer um trabalho social. Tem uma coisa toda sobre o custo, que é um pedaço ruim, que tem de jogar fora porque não vai para a ponta. A ponta tem pessoas também, a ponta tem de remunerar gente, de beneficiar gente com condições materiais que possa fazer o trabalho e isso tem de ser valorizado. Certamente isso que está acontecendo nas equipes das OSCs, não é isso, o serviço chega na ponta e quem leva o serviço até a ponta é um ser humano que precisa estar em condições de fazer isso. 

Roberta: : E agora, Mari, a pergunta de um milhão ou de um bilhão de dólares. Quando saiu essa notícia da grande doação, muitas organizações ficaram animadas e se perguntando: como eu faço para entrar no mapa, na lupa de grandes doadores de grandes fortunas, o que estes grandes doadores querem, como me aproximo deles, enfim, mas principalmente o que eles estão procurando, para a gente conseguir contar melhor as histórias sobre o que a gente faz e atrair investimentos? É curioso que muitas organizações que receberam esse recurso da Mackenzie falaram que nunca tiveram nenhum contato, na verdade foram procurados, do nada, bateram na porta e falaram: oi, queremos doar para vocês. Na sua experiência, na Fundação Tide Setubal, que é liderada por uma grande filantropa brasileira que é a Neca Setubal, o que um grande doador está de olho quando escolhe um projeto? O que vai fazer brilhar esse olho, essa vontade de ajudar, para fazer uma doação significativa a um projeto que já existe? 

Mariana: Roberta, eu acho que o que talvez a Neca tenha em comum com a Mackenzie é que não é um olhar para cada projeto, é um profundo compromisso com a redução da desigualdade e uma noção do seu privilégio. Eu acho que é uma responsabilidade pouco equivocada de jogar para os projetos, “vem aqui, venha mostrar o máximo do máximo para que a gente se interesse por você”, na verdade isso é um pouco cruel.

Roberta: É o caminho contrário…

Mariana: É uma decisão que tem de fazer algo. E aí você vai apostar, eu quero doar porque tem coisas legais acontecendo, mas não são também só as coisas mais legais do mundo, as estrelas que devem receber, porque tem organizações que não seja seu alvo, que não tenham criado seu melhor pitch, com uma rede dessa de apoio, ela dá um salto, ela dispara ali. Tem muitas organizações nesse ambiente que já estão fazendo o melhor que podem dentro das suas realidades, e aí é manter. Manter o ritmo, continuar sempre sensível ao seu entorno. Realmente, quem está na área social tem que vontade sempre de melhorar, de se superar. Estar antenado é sempre importante, estar atento a dar o seu melhor, mas tirando isso, é o outro lado. É “o que eu posso fazer? ”, não é o que ele pode fazer. Posso confiar mais? Posso ampliar isso aqui? Posso dar mais tempo? Posso criar uma conexão mais legal para eles? A responsabilidade tem de ser um pouco dos dois lados, e eu tendo a achar que o lado dos projetos e causas já está na frente nessa corrida. 

Roberta: : Muito legal ouvir isso, esse é um tema sempre complexo, porque a gente não quer ao mesmo, a gente sabe que culpabilizar as grandes fortunas, a gente afasta em vez de atrair para dentro da conversa, mas de fato, como cidadãos e isso serve para quem é empreendedor social ou trabalha no terceiro setor ou para qualquer cidadão brasileiro, de fato a gente tem de cobrar mais consciência de quem está no topo do capitalismo, das elites para que se mobilizem mais e se responsabilizem mais pela desigualdade, ela é criada e ali mantida, ela não é nos dada. Quem está no topo contribui para que ela se mantenha e precisa contribuir para que ela se equalize.

Mariana: Acho que você falou uma coisa que é bem importante de tirar do jogo, para mim, pelo menos, não tem culpado. Não se trata disso…

Roberta: É, é uma questão sistemática, da maneira como a nossa sociedade é construída…

Mariana: É isso! A gente chegou no jogo, o jogo já estava sendo jogado, a questão é que cada um vai fazendo seu jogo, tem um problema social muito grande. A gente que entrar para fazer diferente, eu não tenho de mudar o jogo inteiro, não é isso, mas o que a gente pode fazer, dentro do espaço que a gente tem, que a relação entre as pessoas, a forma de produzir deve ser diferente, para que gerações futuras possam ter uma situação melhor em suas mãos. Acho que é se perguntar como eu trabalho?, por que eu trabalho?, quanto eu ganho?, quanto eu consigo remunerar? Será que eu consigo trabalhar essas questões? 

Roberta: Acho que é a responsabilidade, né? Acho que é isso. Nossas responsabilidades são do tamanho dos nossos privilégios. Mas, enfim, essa é uma longa conversa, muito boa de se ter, Mari. Muito obrigada por ter vindo participar do nosso podcast e ter trazido contribuições tão importantes para esse assunto que é sempre tão necessário. 

Mariana: Muito obrigada! É um papo para ter ainda por muito tempo.


Roberta: E agora vamos pra nossa rodada relâmpago?

Mariana: Vamos lá! 

Roberta:  Eu vou te fazer cinco perguntas e você responde com a primeira coisa que vier à sua cabeça. Ok?

Roberta: Qual foi a sua doação mais recente?

Mariana: Foi no Alas. O edital da nossa fundação que apoia lideranças negras.

Roberta: Qual é a sua causa do coração?

Mariana: Desenvolvimento territorial, reduzir a desigualdade, tentar novas formas de organizar a autonomia, criar pertencimento. Tornar as pessoas melhores, não só do ponto de vista material, mas torná-las mais parte, criar pertencimento para as pessoas, sabe? 

Roberta: O que você doa e que não é dinheiro?

Mariana: Um pouco da alma, né? O coração, o engajamento, estar de fato preocupado, tentando. 

Roberta: Cite uma organização ou um projeto que você admira e/ou apoia:

Mariana: Eu nem sei se é pouco conhecido, mas é um projeto que é inspirador que é o Banco Palmas, de Fortaleza. 

Roberta: Que argumento você dá para convencer alguém que ainda não doa, a doar? 

Mariana: Eu sinto que a pandemia mexeu bastante, mas acho que normalmente é a reação àquilo as pessoas dizem: é tão pouco o que eu posso dar, que não faz diferença e tal… e acho que o principal argumento é: quando alguém doa, quem recebe se sente ‘confiado’, “poxa, alguém que eu nem conheço, acreditou” e esse sentimento, de qualquer valor gera uma onda. Não é só a ideia do valor de quanto você doou, é a ideia de que existe uma onda de responsabilização, onde todo mundo começa e a sua participação, ainda que seja com aquele recurso pontual, é um sinal a mais, é uma grande rede com vários pontinhos e que cada pontinho, juntos vão fazendo o negócio brilhar mais. 

Roberta:  É isso, querida! Muito obrigada pelas suas respostas, pela sua participação. 

Mariana: Obrigada, Roberta! 

Roberta: Foi uma conversa muito rica aqui no programa, hein Artur?

Artur: Pessoal aí do Bicho de Goiaba, por favor, coloque aí (risos), tá virando tiazona, também, hein? Esse papel era meu, hein? 

Mas bom, muito bem, Roberta. 

Acho que a gente conseguiu trazer um pouco mais do ponto de vista dos grandes investidores sociais, e quem faz captação de recursos e tá ouvindo, possivelmente teve insights pra buscar uma aproximação com esses doadores.

 

Roberta: Exatamente! E se você não é milionário mas tem algum dinheiro que possa ser revertido pontualmente para uma boa causa, a Duda Schneider sempre tem uma boa dica, no quadro Merchan do Bem. Vamos ouvir o que ela trouxe hoje?

 

Duda: Oi, gente! Eu sou a Duda Schneider e esse é mais um Merchan do Bem!

Hoje vou falar pra vocês sobre a parceria da Farm com as mulheres das aldeias Yawanawa, que fica no coração da Amazônia. Essas mulheres, que são as  primeiras a se tornarem caciques, pajés e professoras indígenas, inspiraram a marca a produzir coleções exclusivas desde 2017, quando teve início a parceria que apoia, até hoje, a manutenção cultural, social e ambiental de sete aldeias yawanawa.

A cada nova coleção, as peças trazem estampas baseadas na criação artística e nos elementos adotados pelas mulheres artesãs, que carregam a força e a sabedoria dos povos indígenas. São roupas e acessórios belíssimos e cheios de significado!

E o mais importante: até aqui, essa parceria gerou mais de 1 milhão de reais em renda, impactou 160 artesãs, plantou 7 mil árvores em áreas desmatadas, investiu mais de 200 mil reais em ações locais, instalou internet nas aldeias, apoiou um festival e também a formação de jovens em administração e contabilidade. Ufa, quanta coisa!

Incrível, né? Você confere a coleção Farm + Yawanawa, em farmrio.com.br/yawanawa

Espero que tenham gostado, até a próxima!

 

Artur: Roberta, o programa de hoje já foi cheio de dados, de informação… Mas antes da gente encerrar, eu queria trazer mais uma referência para a gente refletir. Um estudo lançado recentemente pela Lilly School of Philanthropy, de Indiana (EUA), identificou que os doadores têm cada vez mais expectativas sobre como as organizações constroem conexões com eles. Eles concluíram que uma boa comunicação para arrecadar fundos, por exemplo, é aquela que induz a uma resposta empática e/ou moral, e não a que apela a sentimentos de tristeza ou culpa. 

 

Roberta: Isso vai muito na linha do que a filantropa Lisa Greer fala. A Lisa é autora do livro “Philanthropy Revolution”, e defende que a maneira como as organizações captam recursos é ultrapassada, e que o futuro da filantropia está em arrecadar fundos unindo os principais avanços da tecnologia com atributos humanos fundamentais. Segundo ela, os doadores querem ser vistos como indivíduos, e não como um caixa eletrônico. E aí é preciso encontrar formas de fazer uso das novas ferramentas tecnológicas disponíveis para criar relacionamentos autênticos e significativos com os potenciais doadores.

 

Artur: E sempre bom lembrar também da importância de mostrar resultados, apresentar o impacto da sua ação. Quem sabe, com tudo isso, sua organização não é a próxima a receber um aporte milionário?

 

Eu acho que é importante falar aqui e poderia discorrer muito sobre o tema, mas enfim já tem gente discorrendo demais, eu acho que a gente precisa de algumas ações e principalmente, tem duas coisas que eu gostaria de falar. Uma é: o maior problema de fazer uma conexão entre os muito ricos e os muito pobres no Brasil, é que o abismo que se criou por conta do histórico escravocrata, pela concentração de renda que vem desde as capitanias hereditárias, pelos anos de ditadura no Brasil, fizeram com que os mais ricos se desconectassem tanto da realidade dos mais pobres que eles desconhecem completamente. 

 

Vou dizer para vocês, uma experiência própria, eu venho de uma família de origem pobre e eu vivi uma infância de classe média na zona sul de São Paulo, e mesmo eu tendo alguma proximidade com alguns problemas sociais, eu tive a oportunidade de conhecer o Brasil profundo na minha época de produção de vídeo, que para fazer vídeo você é obrigado a ir até os lugares, e eu realmente me choquei com algumas coisas que eu vi ali que eu tenho certeza absoluta de dizer que a maior parte das pessoas que estão nos ouvindo aqui, e meus colegas de trabalho em captação de recursos, em terceiro setor, desconhecessem completamente. O Brasil não conhece o Brasil. Então, é muito difícil você fazer a transição de recursos para aplacar um problema que você desconhece completamente, então a primeira coisa, eu acho que os muito ricos deveriam ter o interesse pela realidade. Ter um esforço para entender um pouco mais quando a gente fala dos problemas sociais, entender o que eles são de fato.

 

E uma outra coisa, eu acho que tem também de ter um esforço de diálogo, dos dois lados. Por mais que pareça chavão falar isso, mas de fato tem uma guerra, assim, tem gente que abusa de uma narrativa tipo “os bilionários deveriam ter vergonha, tem que dar o dinheiro”… e eu acho que tem de abrir um diálogo mais produtivo, mais racional nesse caso, de tentar estabelecer diálogos mesmo, “ah, tá bom, quem são os bilionários? como eu acesso eles? como eu vou me comunicar de tal forma que gere uma empatia, um interesse dos dois lados?” e que tenha um diálogo aberto, franco, convidativo? acho que isso é também de bom tom, porque se não acaba dando só murro em ponta de faca e ninguém ganha com isso. É difícil a gente falar de política aqui, porque de fato não se faz política, em geral a política no Brasil é muito ocupada por um gangsterismo, assim. Mas, a política no seu conceito de diálogo e de construção conjunta precisa ser retomada e principalmente no setor social, precisa desse diálogo. Tem  de entender quais as motivações ou incentivos dos dois lados extremos dessa pirâmide social e tentar estabelecer conexões entre eles e a conexão que existe é que são pessoas, dos dois lados, por mais distintos que possam ser, quase não parece da mesma espécie quando a gente vê, mas são. As pessoas tem sentimentos, elas têm filhos, elas amam e eu acho que a gente tem de conversar mais e assim vai ficar mais fácil de transferir o dinheiro.

 

Roberta: Uau! Bom, esse é um tema muito complexo que a gente pode analisar de muitas perspectivas. Tem a questão de a gente ver como cidadãos mesmo, de olhar para o capitalismo, para a economia e entender que todo o recurso advindo do capitalismo não será predatório, bilionários deveriam ser taxados, deveria haver um limite para a riqueza e essa riqueza deveria ser melhor distribuída, entre aqueles que ajudam a construí-la, enfim há muitas questões. E eu recomendo muito que vocês leiam, quem está escutando, a carta que o Fundo Frida escreveu, que é um fundo de apoio a jovens feministas do mundo e que recebeu a doação da Mackenzie e escreveu uma carta resposta com muito bom senso e clareza, entendendo que esse dinheiro tem origens escusas, baseado em trabalhos exploratórios, práticas trabalhistas que beiram ou são ilegais mesmo, que é o trabalho da Amazon de onde vem a fortuna da Mackenzie, mas ao mesmo tempo tem a questão Robin Hood da vida que aceitar recursos das grandes fortunas é uma maneira da gente fazer reparação social, histórica e usar isso para reequilibrar a balança. A grande questão que a gente ouve da Lisa, que eu acho muito interessante, é pensar como que a gente se aproxima mesmo e também pela pesquisa da Lilly Foundation, não pela culpa ou pela tristeza e sim pela proximidade de valores. Com todas as tecnologias possíveis para a gente stalkear a vida dessas pessoas ricas, milionárias, bilionárias, não é difícil buscar na biografia delas, coisas que nos aproximem delas e aproximam elas das nossas causas, então, acho isso uma forma muito interessante dos captadores de recursos pensarem em como abrir o diálogo.  Às vezes aquele grande doador, possível grande doador é alguém que teve um caso de câncer na família e que por isso vai se sentir tocado pela sua causa ou que é filho de imigrantes que sofreram para construir sua vida e aí vão se sentir tocados por uma causa de direitos humanos, de empregabilidade; é um empreendedor que talvez vá valorizar a educação… Pesquisar a biografia desses futuros possíveis grandes doadores acho que é a melhor maneira de a gente começar a buscar os seis graus de separação e buscar o diálogo sobre o que a gente tem em comum e convencê-los a investir na nossa causa. 

 

Artur: Bom, a discussão vai longe, teremos muitos outros episódios para falar desse tema, enquanto o abismo aí, nessa pirâmide social não diminuir, a gente vai ter que falar muito sobre isso. 

 

E por hoje é isso, pessoal, mas o papo, como sempre, continua nas nossas redes sociais. Segue a gente lá no Instagram, @institutomol, e no LinkedIn. Semana que vem a gente volta! Esse podcast é uma produção do Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do Infomoney. 

 

Esse episódio teve produção da Mônica Herculano. O roteiro final e direção são de Ana Julia Rodrigues e Vanessa Henriques, arte da Glaucia Ribeiro, do Instituto MOL. As colunas são de Rafaela Carvalho e Duda Schneider, da Editora MOL. A edição de som é do Bicho de Goiaba Podcasts. Até mais!

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