Transcrição EP#48 — Retrospectiva 2021

Roberta: 2021 tem sido um daqueles anos esquisitos: com o prolongamento da pandemia, ninguém sabe dizer direito o que aconteceu em 2020 ou nesse ano, já que os meses ficaram muito parecidos com tantos dias de isolamento social, tantas crises, tantas notícias sempre iguais. Mas no setor social, é importante a gente fazer essa distinção: enquanto 2020 foi o ano da doação — como a gente falou muito ano passado, inclusive na nossa retrospectiva — em que a mobilização de recursos e o choque com uma situação tão diferente pareciam impulsionar a solidariedade de pessoas e empresas, em 2021 as coisas mudaram bastante. A gente viveu uma acomodação dessa situação, já não tão extrema, mas ainda assim com grandes lições para a gente pensar e refletir para o nosso futuro próximo. Hoje, a gente vai reviver os melhores, e piores, momentos deste ano para a filantropia? Eu sou Roberta Faria, hoje recebo a advogada, filantropa, co-fundadora e líder do movimento por uma cultura de doação, conselheira do instituto MOL e minha amiga querida Joana Mortari para a nossa retrospectiva do….

 

Roberta e Joana: Aqui se Faz, Aqui se Doa!

 

Roberta: Está começando mais um Aqui se Faz, Aqui se Doa, o seu podcast semanal sobre cultura de doação produzido pelo Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do Infomoney. Hoje estou sem a companhia de Artur Louback, mas conto com uma parceira incrível para essa missão retrospectiva! Tô falando da Joana Mortari, que é Diretora da Associação Acorde,  co-criadora do Movimento por Uma Cultura de Doação e conselheira do Instituto MOL. Além de uma amiga e musa querida, que consulto em todas as horas de grandes dúvidas. Joana, seja bem vinda ao nosso podcast!

 

Joana:  Obrigada, Roberta! Estou muito feliz de estar aqui com você hoje! Só um pouco decepcionada de não poder trocar ideias com o Artur, mas o ano que vem cobro um convite novo!

 

Roberta: É que a gente tinha muita coisa para falar hoje e pensou que se tivessem três pessoas conversando, o podcast ia ter que ficar com duas ou três horas. Então, a gente tirou no palitinho e fiquei com a sorte de estar com você. É todo nosso o prazer de te receber aqui! Você que é uma das nossas ouvintes número um, sempre comentando todos os episódios e trazendo grandes contribuições para as discussões. Bom, então vamos na nossa missão que é mergulhar nessa retrospectiva? A gente vai começar voltando no tempo, até fevereiro de 2021,com uma notícia boa! O Ministério da Economia reconheceu oficialmente, no Código Brasileiro de Ocupações, a profissão de captador de recursos. O pedido veio da ABCR, a Associação Brasileira dos Captadores de Recursos, por meio do seu programa de advocacy, e representou uma conquista histórica para o setor. Que, é bom lembrar, é formado majoritariamente por mulheres. Já não era sem tempo, né Jo? Qual o impacto dessa formalização?

 

Joana: Pois é! A ABCR também é integrante do Movimento Por uma Cultura de Doação, senta em uma das cadeiras de coordenação com muita honra para a gente. Acho que o reconhecimento do Captador de Recursos como profissão é um passo na direção de também reconhecer as organizações sociais como um setor produtivo. Regulamentar é nomear, reconhecer e dar identidade para as milhares de profissionais responsáveis por cuidar do financiamento da sociedade civil organizada. Quanto mais cuidadoso e profissional o processo de mobilização recursos for, maior a chance de um financiamento que permita uma atuação social independente e forte, que fortaleça a nossa democracia.

 

Roberta: E foi no início do ano também que nós vivemos, infelizmente, o agravamento da crise da Covid-19 no país. A gente fala tanto disso que é desses momentos que a gente não sabe em que mês isso aconteceu. Mas foi em 2021 que atingimos o auge das internações, das mortes… Hoje, estamos com mais de 600 mil óbitos, o segundo maior número no planeta, mais de 22 milhões de casos acumulados. E isso veio em um momento em que a gente já estava cansado de falar no assunto, de sofrer, se preocupar, chorar… Mas, na verdade, a gente ainda estava na metade do caminho.

 

Nos primeiros meses do ano vimos os casos da doença aumentarem de forma dramática principalmente na região Norte com a grande crise de desabastecimento de oxigênio nos hospitais. Foi um momento extremamente dramático para muitas famílias em todo o país. E, junto com essa crise, veio também a crise econômica e vimos ressurgir com força as campanhas para combater a fome no país.

 

Um exemplo foi a campanha “Tem Gente com Fome”, uma mobilização nacional de arrecadação de fundos para ações emergenciais contra a fome, miséria e violência na pandemia que buscou atender as famílias mapeadas por organizações sociais que atuam em bairros, favelas e quilombos em todos os estados do Brasil. O movimento foi uma iniciativa da Coalizão Negra Por Direitos, em uma articulação que reúne 200 organizações, com a parceria da Anistia Internacional e de várias outras entidades do terceiro setor. Lançada em março de 2021, a campanha arrecadou até novembro deste ano mais de R$ 21,4 milhões. Um grande número!

 

Joana, esse é só um exemplo de tantas outras mobilizações que aconteceram no país para combater os piores efeitos da pandemia e das crises política, econômica, social, sanitária, e que têm no terceiro setor sua operação e mobilização. Nada disso teria acontecido sem as organizações da sociedade civil que assumiram, muitas vezes, o papel do Estado mesmo. Foi quase um replay daquele início da pandemia, em que as organizações assumiram esse protagonismo na ponta e passaram a trazer respostas para as urgências da sociedade, porque elas sabiam o que precisava ser feito. Mas teve uma grande diferença: o fôlego das pessoas para doar já era outro. Não só das pessoas, mas também das empresas. A gente viu cair muito as mobilizações e doações.

 

O que será que aconteceu? A gente ficou mais insensível? A gente se acostumou? Dizem que a gente se acostuma com tudo, será que nos acostumamos com as notícias ruins também? Parou de se sensibilizar? Ou não, só faltou muito dinheiro? Muita gente passou a precisar de doação, ao invés de doar também…

 

Joana: Eu acho interessante, porque, de uma certa maneira, no fundo, se a gente se pergunta, a gente sabe o que aconteceu. Você mesma já deu um pouco da resposta, mas vou falar de um lugar um pouco mais de quem olhou muito para esse processo todo de doação de 2020 e 2021. Tivemos outras conversas aqui no podcast sobre esse ímpeto doador. A gravidade da pandemia, a gravidade pandêmica, e a seriedade da resposta.

 

O que a gente tinha falado um pouco ano passado, que eu retomo aqui, é que toda a calamidade é uma força doadora, porque ela acorda a nossa alma. A nossa alma grita em desconforto e a gente quer ser parte de algo positivo na vida das pessoas quando a gente vê sofrimento. Isso é lindo! Na verdade, isso é ser humano. Acontece que esse reflexo doador é passageiro, por natureza, ele esfria. E, o que acontece, é que enquanto para algumas pessoas esse reflexo de doação adormece, para outras, ele desperta uma reflexão sobre o papel de cada um de nós na formação do mundo que a gente quer e que a gente merece. Então, ele desperta conversas internas nas pessoas. Consequentemente, nos grupos de pessoas: famílias, empresas…

 

Para mim, tem um lugar chave nessa passagem de 2020 para 2021, que é difícil trazer em números, mas você consegue perceber nas conversas com consultores e organizações que trabalham mais com organização de patrimônio, famílias doadoras; e mesmo — a gente, talvez, fale um pouco disso hoje, não tenho certeza, mas sobre os números do Dia de Doar, que aconteceu agora no final de novembro. O fato é que essa transição do reflexo doador para a reflexão do doador é a semente de onde nasce um doador consciente e constante. É de onde nasce uma cultura de doação enraizada. Então, esse é exatamente o lugar que a gente quer ver na sociedade. É uma pena que, às vezes, o externo precisa estar muito sombrio para a luz interna humana acender. Mas é verdade que, olhando por outro ângulo, onde existe sombra, existe luz.

 

Roberta: A gente teve um acontecimento curioso nesse ano que marcou um pouco o nosso campo e que a gente acompanhou de perto no Movimento por uma Cultura de Doação, na metade do ano, em julho de 2021. E tudo começou quando o economista Ricardo Amorim, que é bastante conhecido, está na televisão, tem muitos milhões de seguidores, é um grande influenciador digital, postou um tweet infeliz dizendo que impostos deveriam ser considerados doação no Brasil, inferindo que não se sabe para onde o dinheiro vai em ambos os casos. Essa postagem provocou uma reação do campo filantrópico, furiosa e indignada — com toda a razão — mas que culminou numa live muito educada com o Ricardo pra falar sobre cultura de doação. Da qual você participou, claro, claro e também o Leonardo Letelier (Fundador e CEO da SITAWI Finanças do Bem), a Patrícia Lobaccaro (CEO da Mobilize Global). Queria que você contasse um pouco mais dessa história, porque acho ela muito representativa do pensamento ainda arcaico de boa parte da sociedade sobre o que é doação e o que é função do terceiro setor.

 

Joana: Essa foi uma das muitas lives que participei, enquanto a live ainda estava alive.

 

Roberta: Agora é assíncrono (risos)

 

Joana: Mas acho que foi marcante mesmo. Acho que você traz na sua fala já o por quê. Claro que não intencionalmente, de maneira alguma a intenção do Ricardo foi criticar a doação, mas, ao criticar impostos, levou junto. Jogou a água da bacia com a criança.

 

Roberta: Jogou a água da bacia com o bebê dentro (risos)

 

Joana: E inferiu que o dinheiro da doação é um dinheiro que ninguém sabe para onde vai, o que é uma grande ignorância. Mas vem de uma percepção e, ao trazer essa percepção ele deu para o Movimento Por uma Cultura de Doação a chance de responder. E acho que ele foi muito responsivo também, em relação ao nosso pedido, às nossas reclamações de pedido de resposta, de marcar essa live e topar conversar com a gente. Então, foi tudo um processo muito positivo no final e uma oportunidade de conversar com o público ouvinte do Ricardo Amorim, que é mais do mercado financeiro, sobre coisas que expressam essa mentalidade que, muitas vezes, o mercado financeiro chama de dinheiro ou fundo perdido.

 

Não sei se você já ouviu isso, mas acho que não tem nada mais dolorido para a alma humana — vamos falar de novo da alma humana — do que falar que um dinheiro de doação é um dinheiro ou fundo perdido. Um dinheiro que é para outro, que não tem esse retorno visível e perceptível para o doador logo de cara, não necessariamente não tem um fim. Agora à pouco, você falou de confiança, Ro, a gente pode falar um programa inteiro falando sobre confiança que você sabe que eu adoro.

 

Roberta: Está na nossa lista de pautas! (risos)

 

Joana: Mas acho que tem algo que a doação exige da gente, que é entender que doação é diferente de uma transação de compra e venda, por exemplo, ou de investimento. O que quero dizer é que ele não é como você entrar em uma loja, como sempre falo, deixar o seu dinheiro e sair com a calça jeans. Aquela transação acabou ali, sai todo mundo feliz: uma pessoa vendeu uma calça que alguém queria, a outra pessoa está levando uma calça para casa, e está tudo bem. Na doação, você entrega o seu dinheiro em confiança à uma organização social que se propõe a fazer um trabalho que você quer que seja feito. Você vai colher os frutos desse trabalho, na sociedade, daqui há algum tempo.

 

A gente tem que, inclusive, lidar com uma questão de tempo que é muito diferente dos processos da vida econômica. São reflexões que, quanto mais a gente compreende, mais fácil fica a conversa com outros setores da nossa sociedade sem a gente ficar sendo moldado por eles. A vida econômica tem o seu papel e a vida social e cultural tem outro. O equilíbrio entre esses papéis é importante.

 

Roberta: Um caso simbólico, também, foi o DJ Alok, conhecido mundialmente, melhor DJ do mundo, e estava lá, esse ano, fazendo a abertura do festival da ABCR — que é uma conferência de captação de recursos muito do nosso nicho. É juntar dois mundos muito diferentes em um mesmo lugar. Ele também é filantropo e também tem outras questões que o trazem para esse universo, mas é um exemplo de outros ao longo do ano, de muitas celebridades se engajando em causas sociais, contando sobre as suas doações quando, ainda temos uma maioria da população que acha que a gente não deve falar sobre o assunto, que não é de bom tom contar do que você doa.

 

A gente viu mais celebridades se engajando no próprio Dia de Doar. Tudo isso ajuda a tirar o assunto do lugar do terceiro setor e levar pro mundo. Uma baita jornada, né, Joana? Queria te ouvir sobre isso. Ao mesmo tempo, tem uma questão que essas pessoas que vem de fora do meio podem não ter ainda uma visão mais profunda sobre o assunto e, eventualmente, podem falar coisas que não são as que estamos tentando criar para a cultura de doação. Então, sempre tem os dois lados do assunto, Queria te ouvir sobre isso.

 

Joana: Acho que tudo é uma oportunidade de aprendizado. O que admiro, particularmente, não conheço o Alok pessoalmente, quem sabe o dia, mas conheço o Baskar, que é quem cuida do Instituto Alok, troquei várias ideias com ele ao longo dos últimos dois anos, desde que eles entraram no Movimento Para uma Cultura de Doação. Percebo uma verdade na intenção do Instituto e do Alok. Na entrevista com a ABCR, ele fala muito dessa busca de propósito — uma palavra que em 2020 e 2021 perdeu um pouco de propósito, porque a gente começa a usar a torto e à direita, como se não significasse nada. Mas, quando a gente está falando de um propósito verdadeiro, ele mexe mesmo. Não só mexe com as pessoas, mas atrai pessoas em volta, tem uma força encantadora. É desse lugar que o Alok fala quando se envolve verdadeiramente com o terceiro setor, monta o Instituto e tudo o mais.

 

É muito gostoso ver uma pessoa jovem para caramba tão envolvida com doação e, não só com a doação, mas com a promoção da cultura de doação. É uma honra mesmo ter ele com a gente no Movimento e espero que seja um ícone de muitos.

 

Roberta: E, ainda falando de furar bolhas, a cobertura de mídia que a gente começou a ver em 2020 sobre cultura de doação não parou esse ano, felizmente. A gente viu grandes veículos, por exemplo, a Folha de São Paulo, publicar um caderno só dedicado à cultura de doação; Valor Econômico promover uma semana de lives sobre o assunto. A gente viu em muitos lugares virar pauta.

 

Mas, ao mesmo tempo, estranhamente ou não estranhamente, afinal ainda estamos no meio de uma imensa crise econômica, a gente não viu isso se refletir nos dados de doação, né, Joana. Tínhamos certeza de que, depois dos recordes do Monitor de Doações da Covid, da ABCR, que bateu a casa dos 7 bilhões doados por conta da pandemia, achamos que isso se refletiria nos dados da Pesquisa Doação Brasil 2020, coordenada pelo IDIS e lançada em agosto de 2021. Só que na verdade vimos que o efeito da crise econômica prolongada atingiu em cheio os doadores de classe média individuais, que são o objeto da pesquisa. Ao comparar os dados de 2015 com os de 2020, vemos que a doação, na verdade, encolheu no Brasil, mesmo que a gente esteja em um momento em que mais se fala sobre isso, mais viu grandes volumes de doação, ela encolheu em todas as suas formas, desde a doação em dinheiro, até a doação de bens e de tempo — o que também te ma ver com a emergência sanitária que deixou as pessoas mais dentro de casa. Enquanto em 2015, 77% da população havia feito algum tipo de doação, em 2020, o percentual ficou em 66%. Quando se trata de doação em dinheiro, a proporção caiu de 52% para 41%, uma queda significativa. E no caso de doações para organizações/iniciativas socioambientais, o que exclui as doações para entidades religiosas, a redução foi de 46% para 37%.

 

Pra quem quiser saber mais sobre a Pesquisa nós vamos deixar o site indicado na descrição, e tem um episódio inteirinho com entrevista com a Paula Fabiani, diretora-presidente do IDIS, por trás dessa pesquisa: busca aí o episódio número 39, da nossa primeira temporada que você sabe mais dos detalhes.

 

Joana, quais foram os dados que mais chamaram a sua atenção na Doação Brasil?

 

Joana: Sou super fã da Pesquisa Doação Brasil. Quando o Movimento Por uma Cultura de Doação começou, há mais ou menos dez anos, a gente tinha dois grandes objetivos iniciais. Um era exatamente o que a gente está fazendo aqui, agora: conversar sobre doação com um público expandido ou, como você gosta de falar, furar a bolha. Aí, a gente se envolveu com a campanha do Dia de Doar, liderada pela ABCR e pelo JP. E a gente queria dados! Me lembro de alguns membros do nosso comitê inicial que diziam que não conseguiam conversar com empresários e pessoas do mundo dos números sem números. Então, a Pesquisa tem esse valor muito grande para a gente e essa segunda Pesquisa tem o grande valor da gente conseguir olhar para ela e separar o que é promoção da cultura de doação e volume de doação.

 

Quando a gente fala de cultura de doação, fica bem claro, nessa pesquisa, que não estamos falando apenas de volume. É possível identificar um crescimento da cultura de doação e vou falar agora pelo menos quatro avanços na percepção de uma nação doadora, apesar dos números terem baixados. “Ah, Joana, mas volume de doação não é essencial para a sustentabilidade do terceiro setor?” Sem dúvida nenhuma! Não estou falando que a diminuição da doação é uma boa notícia, mas estou dizendo que, apesar da diminuição, a gente tem pelo menos quatro dados positivos que vou passar aqui com vocês.

 

O primeiro é a percepção dos brasileiros em relação à percepção do terceiro setor e o seu poder de transformação evolui muito nos últimos cinco anos. Um dos grandes entraves da doação brasileira, já identificado na outra pesquisa, é a falta de percepção da população brasileira do trabalho e importancia das organizações sociais. De novo, podemos falar um episódio inteiro de podcast sobre isso, mas vou deixar só a chamada.

 

Roberta: Para que serve uma ONG… Acho que a gente até já tem um episódio sobre o assunto.

 

Joana: Além disso, tirar um pouco da consciência coletiva de que o terceiro setor é um setor de ajuda e começar a migrar para a importancia de um setor promotor da democracia no Brasil. E, do mesmo jeito que no setor privado, as pessoas se organizam em empresas, no setor da sociedade civil, as pessoas se organizam em organizações sociais. Então, somos nós, de qualquer forma. Não são outras pessoas. Esse sentido de coletividade é muito importante. Acho que, na Pesquisa do GIFE, acho que vamos falar um pouco dela, ela aparece de novo, então vou voltar para isso depois.

 

A Pesquisa também aponta um aumento na confiança do setor social. Outro grande desafio é confiança, estou prometendo um podcast sobre isso, também vou publicar uma série de textos sobre confiança, começando em dezembro. Mas a gente falou muito sobre isso no Congresso GIFE ano passado, que é o Congresso das organizações do setor de investimento social e filantropia, sobre a necessidade de falar mais e entender o que é essa confiança. E confiar mais. Essa conversa está muito em pauta entre organizações financiadoras e organizações sociais e é legal poder falar um pouco disso para um público mais amplo também.

 

Terceiro item é uma maior disposição de doadores para falar publicamente sobre as suas doações. Isso tem um histórico religioso, até cristão e de outras religiões que trazem muitos valores morais de não falar sobre as coisas boas que a gente faz. E é totalmente compreensível, mas para a formação de uma cultura de doação, não é necessariamente positivo, porque, na verdade verdadeira, o que a gente quer, como Movimento, é que todo mundo chegue em uma festa e fale: “Ro, você não sabe a doação que eu fiz ontem!”

 

Roberta: Sim! (risos)

 

Joana: A gente quer que vire conversa do dia a dia. Lá nos primórdios do Movimento Por uma Cultura de Doação, o Rafa Lafayette dizia que doar tem que ser sexy. Tem que ser uma coisa que todo mundo quer e todo mundo faz.

 

Roberta: Dou esse conselho para todas as amigas e amigos solteiros: não pergunte o signo, pergunta para onde doa. Isso diz muito mais sobre a pessoa!

 

Joana: Exato! (risos) Isso é muito legal que as pessoas estejam mais dispostas a questionar um pouco as raízes do por que não. Olhar para isso com curiosidade, tentar trazer a tona históricos que tem gerações e, de repente, está na hora de ressignificar.

 

Por último, você já falou um pouco sobre o aumento no número de doações entre as classes de maior poder aquisitivo. O Brasil tem um histórico de doação proporcionalmente maior em relação à renda nas classes mais baixas do que nas classes mais altas. Outro dia, estava dando uma conversa, tipo uma aula na Universidade, e uma pessoa me perguntou sobre isso: por que as pessoas mais pobres doam mais? Eu devolvi a pergunta: você me responde. E a pessoa sabia, a gente sabe intrinsecamente, as pessoas que vivem em comunidade se veem mais. Elas se enxergam mais, elas entendem melhor as necessidades uns dos outros. À partir de uma classe média alta, você já vive mais isolado, mais cercado, mais em bolha e não percebe mais tanto a necessidade do outro, não enxerga mais tanto, não se toca. Por isso a pandemia teve o efeito que teve: de repente, você passou a enxergar a dor do outro.

 

Tem uma coisa bonita e importante nessa percepção e sensibilidade que a gente está ainda e, para mim, vem desse lugar do sofrimento pandêmico para todos. Não estou dizendo que está todo mundo no mesmo barco, não vamos usar essa. Estamos em barcos diferentes, mas o mar é o mesmo. É isso, Ro, são quatro pontos muito positivos para a cultura de doação.

 

Roberta: Falando em fundações, um dado recente que vale a gente colocar nessa conversa é o do Censo GIFE 2020, lançado agora em dezembro de 2021. A pesquisa registrou o maior volume investimento social privado no país, com R$ 5,3 bilhões, e, pela primeira vez na história do estudo, a estratégia de grantmaking aparece como a principal estratégia adotada pela filantropia brasileira, superando a execução de projetos próprios, historicamente prioritária. Ou seja, a filantropia brasileira se tornou mais doadora! Acho esse dado incrível, porque ele é consequência da atuação e resposta à pandemia, das fundações e institutos entenderem que precisam apoiar quem já está na ponta, mas, quem sabe, pode indicar uma mudança de longo prazo mais perene para o setor de confiar em quem já está fazendo, ao invés de criar projetos do zero.

 

Joana: Sim. Acho que tem muitos níveis. Sem dúvida nenhuma essa é uma resposta positiva dos doadores institucionais, na minha humilde opinião. Fico feliz de ver esse número, também acho que é um reconhecimento do papel das organizações da sociedade civil, como a gente havia conversado antes. Acho também que é um trabalho do setor, de longo prazo. Faz pelo menos dez anos que existe essa conversa: da importância de ser Grant Maker, que é o termo usado para as doações institucionais.

 

Vou chamar aqui de doações institucionais só para facilitar a vida. Tem várias dinâmicas de pensamento que precisam ser endereçadas para organizações que tenham projetos próprios se tornarem também doadoras ou se tornar só doadora. Inclusive, isso que falei do reconhecimento da importância do terceiro setor, a disposição de trabalhar em um tempo de desenvolvimento que não é só o seu, é o tempo de desenvolvimento das organizações com as quais você vai trabalhar. Isso traz uma complexidade que quero reconhecer.

 

Falei outro dia em uma conversa sobre filantropia de que está mais do que na hora da gente entrar nos lugares difícieis. É difícil entrar no tempo do outro, na organização do outro, reconhecer a forma de pensar do outro, conhecimento local das regiões que é diferente do nosso… É difícil! Mas é o caminho. Não é porque é difícil que a gente não faz. Não é porque é demorado que a gente não faz. Enquanto o tempo for o melhor. Tempo, eficiência e eficácia forem as dinâmicas predominantes da doação institucional, a gente não vai chegar no lugar em que a gente tem que chegar, que é o da mudança social. Mudança social sistêmica, não a que a gente faz e um dia vai embora porque teve uma decisão de cima que mudou a planta da fábrica para outro canto e tudo o que aconteceu na comunidade vai embora com a gente, acaba, deixa de ser feito e anda para trás.

 

Tem uma importância muito grande sim, as empesas fazerem doações. Nem que elas entrem em modelos híbridos de teste. Ninguém precisa escolher uma coisa ou outra. As que estão agora pensando sobre o seu investimento social, sobre a sua filantropia, sobre seu papel na sociedade, que considerem já essa conversa. Não comecem de outro lugar do qual a gente está tentando sair, como setor.

 

Roberta: Um ponto que também chama a atenção na pesquisa do GIFE é o ‘fortalecimento da sociedade civil’ aparecer como causa significativa para as organizações doadoras — que é esse entendimento de que não adianta só doar para os projetos na ponta, mas fortalecer estruturalmente as organizações para que elas possam dar conta não só do que chega na ponta, mas em toda a estrutura. Isso é raro a gente ver, a doação que não é carimbada para o projeto na ponta. Acho que isso é parte desse movimento que a gente já comentou de ver, desde 2020, todos os setores da sociedade valorizando mais o papel das organizações sociais para o nosso desenvolvimento, para a democracia. Pensando aqui que grandes doadores são, muitas vezes, grandes empresários vale a gente citar um levantamento inédito produzido pelo Grupo MOL em parceria com o Movimento Arredondar e CAUSE, outros membros dessa cultura de doação, que investigou iniciativas solidárias em grandes varejistas do país.

 

A pesquisa “Varejo com Causa – Como redes varejistas impulsionam doações no Brasil?”, descobriu que 74% dos entrevistados, entre doadores e não doadores, dizem se preocupar com questões socioambientais. O levantamento também mostrou que disponibilizar algum mecanismo de doação transacional — que pode ser uma doação de troco, um arredondamento de troco, um cofrinho de moedinha, venda de um produto social, doação da nota fiscal, reversão de parte do valor da venda para uma causa, há muitas maneiras de fazer isso — faz com que o cliente se torne mais fiel à marca e construa uma percepção de imagem positiva sobre o varejo: 84% dos consumidores doadores dizem que promover doações melhora a imagem da loja — e 70% dos não doadores concorda com essa percepção positiva — mesmo não doando, acham bom que alguém esteja.

 

Joana, a gente tem esse dado muito alto de investimento social privado e de doações corporativas, que vem de 2020, e temos visto também um grande engajamento das empresas com campanhas de doação ou associando produtos à doações e causas, muitas vezes voltadas para os consumidores mais jovens e mais engajados. Será que esse é um futuro da relação entre empresas, causas e solidariedade? Tirar isso só da área de responsabilidade social ou só dos institutos e fundações associados às empresas e passar a entrar nos produtos, serviços, prateleiras, na relação com o cliente e consumidor?

 

Joana:  Acho que isso dá notícia de uma mudança mais sistêmica que é a busca por coerência. Cada vez mais tenho visto as pessoas cuidando do que fazem em todos os aspectos da vida, e acho isso super positivo. Sobre doação: se existe uma perspectiva positiva sobre doação na boca do caixa — como é o caso do Arredondar, por exemplo. O que acontece: o cliente recebe a pergunta com um sorriso, ao invés de mais uma pergunta chata no caixa, a pessoa que trabalha e lida com o cliente resmungando boa parte do tempo, se vê em um lugar positivo, fazendo a pergunta. Um lugar de quem está impulsionando algo positivo no mundo, ao invés de fazer mais uma pergunta chata. Assim por diante.

 

A importância da gente falar sobre cultura de doação está justamente na virada de percepção das pessoas sobre a importância desses processos de doação. Uma das organizações que é membro do Movimento Por Uma Cultura de Doação e acabou de lançar um botão de doação no site que está fazendo um grande sucesso é o IFood. Todas as organizações têm um receio do que as pessoas vão falar, e se começarem a criticar o que estão fazendo. Sempre digo que, se começarem a criticar, a gente tem uma boa oportunidade de puxar uma conversa que vai mudar a forma como as pessoas pensam, ao invés de se acanhar nesse lugar. Não pode se acanhar quando a gente se propõe a fazer algo positivo como colocar um botão doador em um site ou pergunta na boca do caixa, produto social e a gente é criticado. A gente ainda vive em uma sociedade crítica, então considerem a crítica como uma oportunidade de conversa e façam verdadeiramente.

 

Acho que o extremo desse lugar é o washing: social washing, enviromental washing. Todas essas lavagens.

 

Roberta: Giving washing!

 

Joana: Giving washing (risos) e todos esses lugares… E lavagem em português fica pior ainda do que em inglês!

 

Roberta: Parece outra coisa (risos)

 

Joana: Acho que é isso: faça com verdade e coerência, mas faça. Dê o primeiro passo possível na sua organização para se envolver em ações como essa, são todas bem vindas e são todas um processo. Ninguém vai aceitar de primeira.

 

Roberta: Jo, eu poderia ficar o resto do dia conversando contigo, mas infelizmente a produção já me apitou aqui no ouvido que a gente já estorou bastante o nosso tempo. Uma das mudanças para 2021, que sei que você odeia, é que as pessoas não escutam mais coisas de horas e horas, nem assistem. A gente precisa fazer tudo na velocidade do TickTock. Então, vamos nos dar por felizes que não estamos tendo que dançar, está podendo só falar sem vídeo. Para fechar, queria que você deixasse aqui registrado o seu desejo para 2022 no que diz respeito à cultura de doação. Pode sonhar alto, tá liberado! Sem limites!

 

Joana: Vou desejar, mas antes vou falar que sim, obrigada por essa conversa mais longa. Obrigada por vocês que estão escutando a gente até agora, porque nosso grande desafio é: o que queremos? Mudar o mundo. Como queremos? Sem aprofundar nos assuntos, porque tem que ser em 30 segundos. Então, muito obrigada pelo seu tempo.

 

Acho que os meus sonhos estão ligados ao que a gente conversou hoje: cada um de vocês se conecte com seu potencial doador. Cada um de nós tem um. Você tem um, olhe para sua vida, olhe para sua renda, escolha um valor que faça sentido para você e doe. Comece. Fale para os amigos que você começou. Se divirta. Curta a organização para a qual você está doando. É exercitar um poder que cada um de nós tem de formar a realidade em que a gente quer viver. Doar não é uma responsabilidade de outra pessoa ou algo para eu fazer quando ficar mais rica. É coisa para já!

 

Roberta: Sim! Para já!

 

Joana: E, uma coisa que falo sempre, e a gente sempre repete isso no terceiro setor, então estou falando com as ONGs que escutam a gente: nenhuma doação é pequena, toda a doação é importante. Só no Brasil a gente chama doação individual de pequenas doações, vamos parar com isso já! É o meu sonho!

 

Roberta: Sim! O PIX está aí para isso: para toda doação ser possível e importante. Gosto muito do seu desejo, Joana. Vou acrescentar o meu que não está no roteiro, mas vou tomar licença. Sempre falo, esse é o espírito por trás da vontade do Instituto, que gostaria que a doação fosse encarada como um dever cívico e não como algo moral que você faz porque é bom ou do bem. Acho que não é esse o lugar — o lugar da doação é o do exercício da cidadania. Assim como votar.

 

Em 2022, a gente tem eleições. Estou ansiosa para poder exercer meu direito de votar e mudar a realidade para a que eu quero e acho que a doação tem essa co-relação. A gente pode, com a nossa doação, escolhendo as organizações e causas, da mesma maneira que a gente escolhe candidatos, pela sinergia que tem com nossos valores, pela importância que tem na nossa comunidade, pela confiança que depositamos neles, e acompanha, idealmente, esse trabalho depois de maneira ativa e não só esperando, como você falou. Não espero que a minha excelente deputada venha me dizer, embora ela mande newsletters dizendo o que está fazendo, mas gosto de acompanhá-la. Do mesmo jeito, a gente pode fazer isso pelas organizações.

 

Então, nesse 2022, que vai ser um grande ano do civismo, do exercício da cidadania, da gente participar de eleições muito necessárias, muito importantes em um movimento de crise e polarização, que a gente possa levar essa mesma responsabilidade e compromisso para a doação. Gente, por esse ano é só, mas semana que vem a gente está de volta: ano novo, vida nova! Ainda tem muito assunto sobre cultura de doação para a gente falar. Quem acha que a gente não vai ter assunto para um ano inteiro está enganado, a gente tem mais pautas do que episódios.

 

Esse podcast é uma produção do Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do Infomoney. O roteiro final e direção são de Vanessa Henriques e Ana Azevedo, do Instituto MOL. A edição de som é do Bicho de Goiaba Podcasts. Feliz Ano Novo!

 

Joana: Feliz Ano Novo!

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