Transcrição EP#79 – Como os povos originários enxergam a doação?

Artur: As reivindicações dos povos originários para terem seus direitos respeitados não são um assunto novo, e os inúmeros problemas foram agravados nos últimos anos. Além da perda cada vez maior de seus territórios, as violações passam por preconceito, agressão e falta de acesso à saúde e outros serviços públicos essenciais. Os desafios atuais fizeram com que diferentes etnias indígenas passassem a se mobilizar ainda mais nas esferas política e social, em busca de soluções que vão além de apoios emergenciais. 

 

O que a gente pode fazer por essas causas e quais são as lições que podemos levar para as nossas práticas de doação como um todo? Pra falar sobre isso hoje a gente vai conversar com o Kleber Karipuna, coordenador de projetos da Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. 

 

Hoje, infelizmente, estamos sem a estrela desse programa, que é a Roberta Faria, mas eu sou o Artur Louback, e eu vou fazer o possível para que, junto com os nossos entrevistados, para fazer o melhor programa. 

 

E como os povos originários enxergam a doação é o tema de hoje no…Aqui se Faz, Aqui se Doa!

 

Artur: Está começando mais um Aqui se Faz, Aqui se Doa, o seu podcast semanal sobre cultura de doação produzido pelo Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do Infomoney. 

 

Segundo dados de 2020 da organização Survival International, o Brasil tem cerca de 305 povos indígenas, totalizando quase um milhão de pessoas. O governo federal reconhece 690 territórios indígenas, que abrangem mais de 13% do território brasileiro. 

 

A Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu uma série de direitos aos povos indígenas. Entre eles estão o direito à posse permanente das terras que tradicionalmente ocupam; o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; a educação escolar multilíngue e comunitária; e um sistema de atenção à saúde. Mas apesar de termos tido avanços nas últimas décadas, muitos desses direitos não estão garantidos.

 

E, eles tem piorado nos últimos tempos com a perseguição que muitos povos indígenas têm sofrido pelos interesses secundários a estes garantidos pela constituição. 

 

E além disso, a nossa carta magna traz uma falha semântica importante. O título do capítulo que trata dos povos indígenas na nossa Constituição é “Dos Índios”, termo que se repete em vários artigos do documento. E a Rafa Carvalho vai explicar pra gente porque essa palavra não é a mais adequada para se falar sobre os povos originários. 

 

Rafa Carvalho: Oi, pessoal! Bora pra mais um glossário?

 

Vou dar um contexto. Em 2019, a primeira deputada federal indígena eleita, Joênia Wapichana (Rede-RR), apresentou um projeto de lei que propunha fazer uma importante mudança: ao invés de “Dia do Índio”, o dia 19 de abril passaria a se chamar “Dia dos Povos Indígenas”. Ela explicou que a palavra “índio” traz um sentido de estigma, quando a data deveria ressaltar o valor dos povos originários para a sociedade.

 

O termo “índio”, para quem não sabe, surgiu porque Cristóvão Colombo, quando chegou ao continente americano, acreditou que estava nas Índias. Ele, então, nomeou assim, genericamente, todos os povos que aqui habitavam. Todo mundo aqui deve ter ouvido essa história na escola, né? Ou seja: além de ter nascido de um equívoco, e estar nas nossas salas de aula, essa palavra reduz de maneira significativa a diversidade de etnias dessa população originária. Além disso, ela vem carregada de preconceitos, como o de que esses povos seriam “selvagens”. Com o tempo, o termo ainda ganhou mais conotações pejorativas, sendo associado à preguiça e ao atraso.

 

O escritor indígena Daniel Munduruku lembra que a palavra tem força. Para ele, o termo “índio” é, de certa forma, um apelido. E apelidos podem ser destruidores. Ele também critica o uso da palavra “tribo” para se referir às etnias, porque ela significa apenas uma parte de um povo. ​

 

Já o termo “indígena” tem como significado aquele que é “natural do lugar em que vive”, “que está ali antes dos outros”. Além disso, a palavra valoriza a ideia de que cada povo originário é único, reconhecendo o peso da sua identidade. 

 

Ficou claro? 

 

Eu sou a Rafaela Carvalho e toda semana ajudo a desvendar um termo importante para a cultura de doação. Até mais!

 

Artur: Obrigada, Rafa! Muito importante esses esclarecimentos. Seguindo com a nossa pauta, em maio deste ano a senadora Kátia Abreu divulgou um vídeo pedindo doação de “roupas usadas”, “camiseta de propaganda” e “lençol velho” para serem entregues aos indígenas da etnia Krahô, no Tocantins. Entre diversas manifestações de repúdio à ação da parlamentar, o Instituto Indígena do Tocantins divulgou uma nota afirmando que os povos originários não precisam de caridade, mas sim de políticas públicas que protejam seus territórios, sua cultura e sua vida. 

 

A Rafa citou o Daniel Munduruku, e numa entrevista ao G1 ele disse uma coisa muito importante nesse sentido: “Identificar os diferentes povos indígenas significa garantir a eles direitos e políticas específicas, não políticas genéricas”. A gente conversou com o Adriano Karipuna, líder indígena do povo Karipuna de Rondônia e estudante de Direito, e ele também falou sobre a importância dessa atenção às políticas públicas para os povos originários.

 

Adriano Karipuna: O povo Karipuna, desde 2018, vem sofrendo um ataque nos seus territórios com relação sobre o desmatamento, e o nosso território Karipuna é um dos territórios mais devastados do Brasil. Nós precisamos de apoio, muito apoio. Esse apoio pode ser financeiro, pode ser também na divulgação das nossas lutas, cobrar do governo, ou seja, do Estado brasileiro, que cumpra com seu papel no que está escrito na Constituição. Direito do cidadão na política pública de educação, na política pública de saúde, na política pública de acessibilidade das universidades, na política pública de implantar laboratórios de informática para os indígenas, da manutenção nas nossas estradas e incentivar a economia indígena, respeitando a natureza sem degradação e sem desmatamento e sem poluir o ar e sem poluir o rio. É isso que falta, que o governo brasileiro precisa cumprir com seu papel no que está escrito na Constituição.

 

Artur: O Adriano é convidado para falar em importantes fóruns mundiais, inclusive o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Há um ano ele lançou um livro chamado “Da floresta para o mundo”, onde fala sobre os desafios de viver na cidade e a ameaça constante de invasão aos territórios indígenas. Ele também contou pra gente o que é a solidariedade na visão do povo Karipuna e sobre a experiência com ações de doação da sociedade civil. 

 

Adriano Karipuna: A solidariedade para nós, povo indígena Karipuna, é respeito um ao outro. Além disso, respeitar a natureza, respeitar toda a biodiversidade. E esse respeito começa de uma forma que nós pedimos licença à natureza quando nós vamos caçar, pescar e colher fruto. Ou seja, nós só podemos abater um animal silvestre que é da nossa cultura, ou colher fruto da nossa cultura, e também pescar, fazendo pesca tradicional, só podemos pegar aquilo que nós vamos consumir, para que não vire pesca predatória, caça predatória, e também não destrua as aves de fruteira. Porque nós temos respeito com a natureza, para que futuramente essa mesma árvore e essa mesma espécie de peixe e de animais ainda tenha para futuras gerações e até mesmo para o ano seguinte. Além disso, nós decidimos coletivamente a política de estratégia em defesa da nossa luta e de toda a integridade física, cultural e territorial do nosso povo. E essa decisão é decidido coletivamente dentro do povo, porque não pode ser unilateral. Ou seja, uma pessoa só não tem decisão para decidir o que é bom para o povo. Até mesmo é conversado entre o cacique e os líderes e com toda a comunidade da aldeia. Nós Karipunas temos experiências sim de doações, mas essas doações não foram direto, ou seja teve um intermédio de parceiros para chegar doações até o nosso povo, ou seja, na nossa comunidade. E essas doações têm que ser através de um representante na qual eu faço parte, como representante do povo Karipuna. Entrar em contato comigo ou com alguém da nossa representatividade, que seja do próprio povo.

 

Artur: Acho que o Adriano traz duas coisas muito importantes: uma é que a gente precisa ficar atento quando vai fazer uma doação pra saber se esses recursos estão realmente indo para a ponta: existem muitas organizações que, por conta da distância entre os povos da cidade e os povos indígenas, que, se colocam como intermediários, mas nem sempre de forma lícita, isso é um cuidado que precisa ser tomado para garantir que os recursos sejam aplicados corretamente. 

 

E a outra coisa é o que a gente pode aprender sobre solidariedade com o povo Karipuna. Quando ele fala sobre o respeito ao outro, o respeito à natureza, o pensar nas gerações futuras e também na coletividade. Tudo isso são questões universais que, da mesma forma, que tentamos ensinar coisas aos povos “aculturados”, a gente deveria aprender com a 

cultura deles também. 

 

Tudo isso são aspectos que a gente deve estar mais atento no nosso dia-a-dia, e quebrar um pouco a ordem que foi estabelecida lá atrás por essa relação metrópole e colônia e que, de alguma forma, continuamos seguindo até hoje. 

 

E isso está muito ligado ao conceito de sumak kawsay, ou “bem viver”. Essa é uma expressão originária da língua quíchua, idioma tradicional dos Andes, e até entrou na Constituição do Equador de 2008. O economista e político equatoriano Alberto Acosta explica em seu livro dedicado ao tema que a ideia do bem viver está diretamente atrelada aos saberes e às tradições indígenas. É um processo que reúne os principais conceitos, experiências e práticas dos povos originários para tentar construir outros tipos de sociedades, baseadas na convivência harmoniosa entre os seres humanos, entre si e com a natureza. 

 

É algo que, conforme a civilização evolui, a gente vai perdendo, temos que concordar. Esse bem viver é bem diferente do modelo de desenvolvimento que a gente vê imperando nas grandes cidades e que segue uma ordem capitalista mais direta, uma ordem de desconexão com a natureza e de aumento das diferenças entre os cidadãos. 

 

Uma ordem mais harmoniosa enxerga os recursos naturais não só como insumos pra produção de bens mais descartáveis, mas sim entender o planeta como um organismo vivo que a gente faz parte. 

 

Esse tema também foi levantado pela Joelma Lopes, da comunidade Carão, região da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. Essa comunidade é uma das beneficiadas pelo projeto Saúde & Alegria, parceria da MOL há muito tempo, que atua na Amazônia desde 1987. A Joelma falou sobre os avanços que a comunidade conseguiu com doações e o que ainda falta. 

 

Joelma Lopes: A comunidade já costuma receber algum tipo de doação sim, através do projeto Saúde e Alegria e parceiros, que hoje, graças a Deus, a nossa comunidade avançou em questões assim de infraestrutura, né? Sobre muitas coisas que não tinha, principalmente água e luz, hoje nós temos, né? Porque ganhamos assim, através de doações. Eu poderia dizer que tem muitas coisas que o povo pode aceitar como doação, mas eu vejo assim que seria muito bom que as pessoas, as pessoas de fora eu digo, as pessoas de fora chegue nas comunidades e procure conversar com o povo da comunidade sobre o valor que nós temos aqui, porque eu costumo sempre dizer na minha comunidade: nós somos um povo rico e nós não sabemos explorar a nossa riqueza que nós temos. Porque graças a Deus nós moramos num lugar privilegiado, onde nós podemos plantar, onde nós podemos criar, onde nós podemos gerar nossa renda, sem derrubar a floresta. Porque eu sou uma pessoa que eu luto muito pela floresta viva e eu procuro muito conversar com as pessoas assim, que vamos cuidar do nosso chão, vamos cuidar da nossa floresta, que ela serve para nós, tanto para nós quanto para as outras pessoas que estão lá fora. No outro lado do mundo, se hoje a gente preservar a floresta, vai servir tanto para nós e tanto para as outras pessoas que estão bem longe da gente, né?

 

Artur: E o que a gente pode aprender com os povos originários sobre doação? Esse é uma tema que trouxemos na entrevista com o Kleber, mas a Joelma também fala sobre o assunto.

 

Joelma Lopes: É a questão da partilha, né? O povo da nossa comunidade ele é muito solidário com as outras famílias que a gente vê que necessitam, porque tem algumas que já tem mais assim uma condição, um modo de viver bem, e tem aquelas outras famílias que não têm a mesma oportunidade que algumas famílias têm E aí a gente a gente procura dividir o que a gente tem, a gente procura dividir com essas famílias também, né? Então é uma doação que existe na comunidade entre os comunitários.

Artur: Bom, acho que a gente já aprendeu bastante coisa importante até aqui, mas agora vamos aprofundar alguns assuntos que já foram levantados conversando uma liderança indígena muito importante em defesa dos povos originários, que é o Kleber Karipuna. Vem do povo Karipuna, do Amapá, e atua na luta do movimento indígena há mais de 20 anos. Atualmente ele é coordenador de projetos da Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e liderança de base da Coiab – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. 

 

Eu já peço desculpas de antemão, porque estávamos em um lugar meio barulhento, e, como o que ele tem a falar é muito mais importante do que um ruído que atrapalha um pouco o entendimento, a gente resolveu manter e acho que está dando para ouvir bem.

 

Artur: Kleber, eu queria começar trazendo uma visão de fora, reconhecendo o meu lugar de não representante de qualquer população indígena, né? Com a minha visão de fora, a gente nota que, ao mesmo tempo em que as populações originárias estão sofrendo graves ataques covardes, vemos jovens lideranças indígenas, como forma de reação, aparecendo mais nas redes sociais. 

 

Queria que você falasse um pouco desse panorama, você nota que tem, de alguma forma, um aumento do interesse pelos povos originários?

 

Kleber: De fato, o contexto que os povos indígenas vivem hoje suscita articulações e traça estratégias de atuação. O movimento indígena já é bastante antigo, datado dos anos 70. De lá para cá as lutas, a partir das lideranças mais tradicionais, trouxeram várias conquistas, mas, com o passar do tempo, a sociedade também veio acompanhando as lutas e se adequando. 

 

Muitos apontam, após a chegada das novas tecnologias aos povos indígenas, “Ah, o índio tá com smartphone, tá um carro, deixou de ser indígena”, e, pelo contrário, né? Ele é mais indígena ainda e, se adaptando e se associando às novas formas de atuação, usa a tecnologia para o bem e para o próprio movimento.

 

A juventude indígena vem fazendo um belíssimo trabalho. Temos hoje dentro das organizações sociais diversas formas de estruturas orgânicas do movimento indígena. Vai desde a aldeia a nível de Estado – ou seja, que representam os povos indígenas na Federação, como a Cohab, que faz a coordenação das organizações da Amazônia brasileira – Tudo isso envolve uma atuação muito forte na área de comunicação, né? E com isso potencializando muito a ação da juventude. Hoje, costumamos usar o termo lideranças da mídia dentro do movimento indígena.

 

Então, são diversas formas de liderança, desde o Pajé até a política. Temos os mais tradicionais, com os anciões, que trouxeram a luta até aqui, tem as mulheres e os jovens comunicadores indígenas também que estão mesclando as lutas com o olhar da tecnologia. As redes sociais são um novo arranjo para o movimento; trazer para a sociedade, em geral, mais informações sobre em relação aos povos indígenas e trazer também à luz as nossas pautas de reivindicação de direitos, assim aumentando o interesse por esse tema.

 

Artur: Perfeito. E, trazendo para o tema do nosso podcast: a cultura de doação. Como você vê a questão do aumento das doações para organizações lideradas por povos indígenas? Existe um aumento também do apoio, da filantropia a essas organizações ou tem entraves ainda? 

 

Kleber: Eu gosto bastante disso, até pela minha atuação. Hoje trabalho em uma coordenação de projetos da Apib e fazendo essa articulação com parceiros, aliados, simpatizantes e militantes da causa indígena. Bem, eu, avaliando o pouco tempo que eu acompanho, considero positivo o crescimento de sensibilidade e da filantropia, seja ela nacional ou internacional – esse segundo é até maior, nós temos um certo déficit nas doações nacionais para os movimentos sociais. 

 

Nós recebemos apoio, seja individual ou de instituições, e também voluntariamente, Apib e a Cohab tem no seu site uma plataforma de doações, que estimula as pessoas a doarem para a causa do movimento indígena. Então, sim, isso vem crescendo ao longo do tempo. Mas é algo que oscila muito, principalmente a partir das relações do Estado brasileiro, da sociedade nacional e internacional do que está acontecendo no mundo. 

 

Só para dar um exemplo, ano passado, quando nós retomamos as mobilizações presenciais, teve o Movimento pela Terra em julho, em agosto o acampamento Luta pela Vida e, em sequência, a Marcha das Mulheres Indígenas, nós tivemos um salto de doações a partir da plataforma da Apib e de outros doadores diretos. Teve uma estratégia de mídia feita pela nossa equipe, e com esse marketing vimos os números crescerem de maneira bem significativa, se comparado 2020 com 2021, o salto foi de mais de 200%. 2022 já foi um ano mais complicado, as doações caíram mais da metade, e foi difícil manter até o acampamento Terra Livre funcionando. Associamos esse cenário a retomada do julgamento do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal, a volta do debate sobre direito territorial dos povos indígenas. Fizemos uma campanha em cima disso com o acampamento Luta Pela Vida e sensibilizou muito a sociedade, tanto nacional quanto internacional. 

 

O acampamento Terra Livre aconteceu na mesma época da Guerra da Ucrânia, então a filantropia se voltou aos refugiados da guerra. Mas, mesmo com essas oscilações, consideramos muito importante a relação entre filantropia e captação de recursos. Ano passado, um grupo de amigos na Europa formaram um grupo e foram captando doações entre seu círculo de convivência e enviaram o montante de doação para Apib. Essas mobilizações são bem bacanas.

 

Artur: Legal. Kleber, esse paralelo que você fez com a Guerra na Ucrânia e o aumento das doações aos refugiados em contraponto aos povos originários. Você acha que para os povos brancos, os povos da cidade, dado a desconexão com a natureza e com os povos originários, é mais fácil se colocar no lugar do imigrante, entender sua dor do que dos povos originários? 

 

Queria que você comentasse um pouco da dificuldade que vocês têm de se comunicar com quem não conhece o contexto, nem geográfico e nem cultural, que vocês vivem, porque, afinal, o país não estimula essa conexão, e o quanto isso dificulta a captação de recursos. 

 

Kleber: Eu considero isso, mas, eu acho, que é muito mais pela sensibilidade de cada causa do momento. Falamos sobre a Guerra da Ucrânia, mas, recentemente, também teve a questão das enchentes em Pernambuco, o que também sensibilizou muito. O povo brasileiro, em geral, é o povo solidário, né? É um povo doador, isso tá no DNA da grande parte do povo brasileiro, graças a Deus. 

 

A conexão do próprio povo brasileiro com os seus povos originários ainda precisa avançar muito. A grande maioria ainda olha os povos indígenas como se fossemos todos iguais, e isso precisa ser desmistificado. E, é claro, isso tem a ver com políticas públicas de informação do próprio Estado. Iniciamos o debate, ainda nos anos 2000, de ensinar nas escolas a verdadeira história indígena e afro brasileira, foram produzidos materiais escolares que traziam o número de povos indígenas, quais regiões vivem, as diferentes línguas. Isso é informação para formação. 

 

Essa geração atual foi toda educada de forma antiga sobre os seus povos originários, o que precisa ser mudado gradativamente, mas tem outro problema também, que é a falta de políticas públicas e os ataques aos direitos indígenas. Assim, muitas pessoas não entendem quando vamos nos manifestar em Brasília, acham que é “baderna”, esse pensamento tem a ver com o atual governo do Brasil, que não é um dos melhores. 

 

Então, vemos pautas tramitando no Congresso Nacional que são anti-indígenas, políticas para nós que foram paralisadas. Divulgamos tudo isso nas nossas redes sociais, mas não chega a todos. E sensibilizar as pessoas com as pautas gera doadores. Como o exemplo que dei antes, sobre as manifestações contra o Marco Temporal, atraiu muito a sociedade, mas, mesmo assim, precisamos avançar na conversação junto a sociedade brasileira, conversar também com os não-militantes da causa indígena. 

 

Artur: Kleber, o papo é muito bom, mas para gente encerrar essa parte da entrevista, eu queria que você dissesse o que que a gente do lado de cá tem a aprender sobre colaboração, doação e filantropia com uma cultura tão antiga, como a que você representa que tem uma grande tradição de troca, né? O que você diria sobre isso?

 

Kleber: A política de troca entre outros povos é muito forte: seja mandioca pela farinha, tucupi por peixe, essa relação é antiga e diferentemente da monetária. Arrecadação financeira é importante, mas a doação de materiais também é: como agasalhos, sapatos, absorventes, fraldas e alimentos, por exemplo. Essa é a política que o povo indígena ensinou, a economia da troca. 

 

Você chegar com R$ 5.000 reais em uma comunidade distante não vai ajudar, mas se já se chega com o que eles estão precisando, como um motor para o barco, por exemplo, isso terá muito mais utilidade do que o dinheiro. A filantropia precisa entender que o financeiro é importante, mas, nem sempre, é o necessário. 

 

Artur: Muito bom, Kleber! Realmente há muito a se aprender com essa cultura mais colaborativa. Às vezes o dinheiro se vira cifra e se perde no ar. Queria convidar você agora a participar de um exercício que a gente tem aqui em todos os episódios, que é uma hora que você deixa um pouco o seu lugar de liderança das organizações que você representa e fala um pouco como indivíduo, solidário, filantrópico e tudo mais.

 

Vou te fazer cinco perguntas, é tipo um ping pong, que você responde com a primeira palavra que vier vier à cabeça. Qual foi a sua doação mais recente?

 

Kleber: Acampamento Terra Livre.

 

Artur: Essa próxima é facilíssima, qual é sua causa do coração?

 

Kleber: Movimento indígena.

 

Artur: O que você doa que não é dinheiro?

 

Kleber: Dedicação.

 

Artur: Cite uma organização ou um projeto que você admira e/ou apoia:

 

Kleber: A CUFA, tenho grande admiração pelo trabalho deles.

 

Artur: Como você convenceria alguém a doar? Qual argumento você usa?

 

Kleber: Sensibilização. 

 

Artur: Muito obrigada, Kleber. Fica o convite para você participar do programa outras vezes e sempre que tiver novas campanhas as portas estarão abertas.

 

Kleber: Agradeço a todos. Um bom trabalho para todos nós, seguimos na luta. 

 

Artur: Excelente papo com o Kleber. Realmente, esse é um tema que a gente precisa tratar mais aqui. Teremos oportunidade de falar mais sobre isso na próxima temporada, podem esperar que esse tema vai estar mais presente.

 

Mas, agora, para vocês que já estão cansados de ouvir a minha voz, eu vou chamar aqui a nossa colunista Duda Schneider que vai tratar de um assunto que foge um pouco aqui da pauta, mas de alguma forma está relacionada, porque também fala de filantropia. Duda, o que temos hoje no quadro Merchan do Bem?

 

Duda Schneider: Oi, gente, eu sou a Duda Schneider, e esse é o quadro Merchan do Bem. 

A dica de hoje é de um aplicativo chamado Food To Save, que conecta estabelecimentos que comercializam produtos alimentícios a consumidores engajados a evitar o desperdício de alimentos, economizar e ajudar a reduzir a fome no país. Funciona assim: o  estabelecimento seleciona os itens excedentes para montagem de uma sacola surpresa e disponibiliza para resgate na plataforma com até 70% de desconto do valor original; o consumidor compra essa sacola e pode escolher fazer a retirada ou receber por delivery. E, também é possível o consumidor escolher fazer uma doação direta para a ONG Banco de Alimentos, e ao invés de receber os seus produtos você faz a doação e a Food To save doa dois pratos de comida, de 500 g, a pessoas e situações de vulnerabilidade. Em ações anteriores com as ONG’S SP Invisível e Gastromotiva e Entregas por SP, eles já doaram o equivalente a mais de 7 mil marmitas. Você pode acompanhar os resultados na página da Food to Save no Instagram @foodtosavebr ou no site www.foodtosave.com.br. Por hoje é isso, pessoal! Espero que tenham gostado e até a próxima. 

 

Artur: Conversas muito boas hoje. Obrigado minhas colunistas por me apoiarem na solidão da apresentação hoje – Roberta, faz muita falta –  E vamos para o encerramento deste episódio. 

 

Antes de terminar, eu gostaria de trazer um termo criado pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, a palavra é Epistemicídio. Para quem não sabe, isso significa a destruição dos saberes locais e a inferiorização do outro. Eu acho que é um pouco do que tratamos aqui hoje.

 

Na minha ancestralidade, eu tenho um pé indígena, pelo lado da minha avó, três gerações para frente e do meu avô também, que se juntaram com imigrantes alemães, essa junção bem brasileira. Sempre demos mais atenção ao lado “imigrante”, mesmo que o lado indígena nos tenha trazido muito mais coisa, como o tratamento de machucados e doenças com chás e outras ervas. Minha avó plantava de tudo e tinha um conhecimento da terra, mas, mesmo assim, a gente foi criado para desprezar um pouco, como se isso fosse normal e que não tivesse importância. 

 

Vale lembrarmos que quando os primeiros europeus chegaram no Brasil, já haviam 11 milhões de pessoas aqui, e eram os povos indígenas. Hoje, a população não soma 1 milhão e, ainda assim, está muito difícil para eles conseguirem manter um pouco mais de 10% do território que, vale lembrar, eles tinham integralmente. 

 

Para ter uma ideia, no primeiro século de contato dos europeus com os povos daqui, 90% dos indígenas foram exterminados, e, desde então, eles vêm lutando para sobreviver.

Não tenho conhecimento suficiente para me aprofundar nesses temas, por isso a gente trouxe convidados tão entendedores do assunto, mas a gente gostaria muito de ouvir vocês, representantes dos povos originários que eventualmente ouvirem esse programa. 

Críticas construtivas são muito bem-vindas e, claro, temas relacionados a esse assunto que a gente pode explorar em episódios futuros, né? 

 

Quem quiser falar com a gente pode pode entrar em contato pelo Instagram @institutomol, e no LinkedIn. Semana que vem a gente volta! Esse podcast é uma produção do Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior, da Morro do Conselho Participações e da Ambev, além da divulgação do Infomoney. Esse episódio teve produção da Mônica Herculano. O roteiro final e direção são de Ana Ju Rodrigues e Vanessa Henriques, arte da Glaucia Ribeiro, do Instituto MOL. As colunas são de Rafaela Carvalho e Duda Schneider, da Editora MOL. A edição de som é do Bicho de Goiaba Podcasts. Até mais!

Leia Também