Transcrição EP #87 – Como transformar o 3º setor em uma potência da economia?

ROBERTA:  Salve, salve nação doadora!

Tá no ar o seu podcast favorito sobre cultura de doação, produzido pelo Instituto MOL com apoio do Movimento Bem Maior.

Aqui, você fica por dentro das conversas do momento na filantropia e da cultura de doação, com informações, pesquisas e entrevistas com importantes personagens do setor no Brasil

tudo de forma clara e objetiva, sem enrolação

 

Eu sou Roberta Faria

 

ARTUR: Eu sou Artur Louback

E, semana sim, semana não,  a gente te convida a vir junto nessa conversa, pra inspirar mais e mais pessoas e empresas a doar! doar com propósito, com consciência e com coração!

 

afinal,

 

ROBERTA/ARTUR: Aqui se faz, 

aqui se doa!

 

ROBERTA: Olá, estamos de volta! E a conversa de hoje é sobre a potência do terceiro setor para a economia brasileira. Para falar sobre o assunto, convidamos Rafael Ribeiro. Rafael é professor na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG e coordenador do programa de pós-graduação em economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da federal mineira. 

Ele também é membro associado do Centro de Economia e Políticas Públicas da Universidade de Cambridge e se especializou em teoria macroeconômica.

ARTUR: No quadro Pra saber mais, a gente traz dicas e inspirações sobre o tema pra você mergulhar no assunto e refletir sobre os desafios e oportunidades para a filantropia e para quem atua com impacto social nesse momento tão decisivo.

ROBERTA: Bem, e pra puxar o tema de hoje, vamos relembrar os dados da pesquisa  lançada em março, “A importância do terceiro setor para o PIB no Brasil” – iniciativa recente do Movimento por uma Cultura de Doação e executada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (a FIPE) e a  Sitawi Finanças do Bem. 


O levantamento apontou que a contribuição do terceiro setor para o produto interno bruto brasileiro é 4,27%, em números aproximados, para cada R$ 100 que o Terceiro Setor gera de riqueza, ele estimula outros R$ 46 em diversas atividades econômicas

Para se ter uma ideia da importância destes números, o setor do agronegócio movimenta 4,57%, enquanto o setor de Fabricação de Automóveis, Caminhões e Ônibus, contribui com 1,73%.  E tem mais: 5,88% dos postos de trabalho do Brasil estão no Terceiro Setor, o que dá mais de 6 milhões de cargos! Para se ter uma régua de comparação, em 2021, o setor automotivo empregava cerca de 420 mil pessoas em todo o país, segundo a Fiemg.

 

ROBERTA: Será que isso é muito? Bom, nos Estados Unidos, em 2022, ele contribuiu com 5,6% do Produto Interno Bruto do país, segundo dados da Independent Sector. 

Lá, o setor empregava aproximadamente 14% da população ativa, ficando atrás apenas do varejo e da indústria, como apontou um levantamento do Centro de Estudos para a Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins.

 

ARTUR: E, além dos números que comprovam a importância do terceiro setor para economia,  é preciso levar em conta os efeitos indiretos que esse setor exerce sobre outros setores da economia. 

Como o próprio estudo comenta, quanto maior o nível de interdependência de um setor em relação aos demais, maior será o seu impacto.

Para se ter uma noção, só no setor da saúde, o terceiro setor é responsável por 1,8 milhões de postos de trabalho, diretos e indiretos. 

E tem um recorte de gênero também. Isso porque as mulheres representam 65% das pessoas empregadas por OSCs, segundo o último levantamento do Ipea sobre esse assunto, que é de 2019. 

Ou seja, o fomento ao Terceiro Setor tem uma grande contribuição para a geração de renda entre mulheres.

 

ARTUR: E a importância do Terceiro Setor só aumenta nesse contexto que a gente tá vivendo aqui no Brasil, de promulgação de um novo arcabouço fiscal e formulação de estratégias para a geração de empregos e desenvolvimento sustentável. 

Há de se levar em conta que as OSCs não só foram fundamentais na assistência à população durante a pandemia como também foram importantes para o diagnóstico da equipe de transição do novo governo.

Isso colaborou para que, já no segundo dia de mandato, fossem resgatados mecanismos que garantem mais participação social nas políticas públicas. Quer um exemplo? A volta de conselhos como o Consea, fundamental no combate à fome em nosso país. 

ROBERTA:

Ou seja, a importância do Terceiro Setor tá mais que comprovada. Mas e aí, como reconhecer devidamente essa importância e transformar ele numa potência em nossa economia? Bom, pra isso, temos que resolver algumas equações para impulsionar o investimento social privado em nosso país. 

ARTUR: Além da desconfiança, que foi até tema de um dos nossos episódios passados, a falta de esclarecimentos sobre o papel do terceiro setor para a sociedade civil impõe desafios para investimentos. 

 

Leonardo Letelier: A gente costuma olhar para o terceiro setor e pensar ele a partir de seus impactos (…) só que esse impacto tá diretamente ligado às organizações sociais. Então, quando um gestor público pensa políticas públicas ou a gente tá discutindo uma reforma tributária que vai impactar a sociedade como um todo, a gente tem que pensar em quais são as consequências dessas reformas em cima das organizações sociais. Porque se não, a gente não vai medir as consequências sobre um setor que gira mais de 4% do PIB. 

E a mesma coisa vale quando a gente pensa no financiamento privado do terceiro setor. Quando você financia de maneira errada essa máquina, com foco excessivo em controle, o que você acaba gerando é menos impacto na ponta, e não mais. Porque, de certa forma, você tá desregulando a máquina pra maximizar um resultado de curto prazo e não um resultado mais efetivo ao longo do período para problemas que são de longo prazo. Nós temos que pensar pelos dois lados da mesma moeda.

 

ROBERTA: Esse que você ouviu é o Leonardo Letelier, CEO da Sitawi Finanças do Bem. Como ele disse, estratégias de governança são importantes, mas é preciso que investidores tenham confiança nas organizações! 

Mas e em termos de políticas públicas, o que pode ser feito para impulsionar o crescimento desse setor que se mostra decisivo para a nossa economia e até mesmo para o bom funcionamento da nossa democracia? Para o Leonardo, há três pontos principais.

 

Leonardo Letelier: Quando a gente pensa em políticas públicas para Terceiro Setor, tem duas formas: as setoriais (focadas na educação, cultura), e as transversais, que afetam todas as organizações, independente da causa. E aí tem 3 ou 4 grupos: a regulamentação (o que precisa pras organizações trabalharem), a tributação (como garantir que tenhamos menor tributação e que ela seja mais sensata), e os incentivos. 

Tem uma série de medidas que podem fortalecer o terceiro setor mas que são verdades pra qualquer setor da economia. Uma tributação menor e mais sensata ajudaria o terceiro setor, mas ajudaria qualquer setor. Algo específico do terceiro setor seria migrar as doações carimbadas para as doações irrestritas, mais pra organização que para os projetos. Quando você não carimba o recurso, você dá a oportunidade para o gestor da organização que você confia, tomar as melhores decisões ao longo do tempo. Essa flexibilidade, que é normal em qualquer setor da economia, a gente não deveria chegar para um gestor de OSC e dizer o quanto ele deveria gastar em cada área. Isso permitiria mais efetividade e inovação. 

 

ROBERTA: E se o exercício aqui é expandir horizontes para criar políticas públicas mais eficazes para o terceiro setor, segundo o Leonardo, vale a pena olhar para o que outros países estão fazendo para impulsionar a cultura de doação

 

Leonardo Letelier: A primeira é não desincentivar doações. O Brasil é um dos poucos países que cobra impostos sobre doações para organizações sociais. Além do Brasil, Croácia, Coréia do Sul. É exceção da exceção. Ao misturar doação para família e doação para organizações sociais, nós desincentivam doações.

Em relação a incentivos, a gente pode pensar em algumas coisas.

Nos Estados Unidos, os incentivos para doação são focados nas organizações e não nos projetos. Então, com isso, você estabelece um outro tipo de relação, um outro tipo de dinâmica. A outra discussão que já ouvi também é, eventualmente, utilizar capital oriundo de privatizações para criar fundos patrimoniais temáticos.

 

ARTUR: Outro desafio para o crescimento do Terceiro Setor em nosso país é a desigualdade na distribuição de recursos. Segundo a rede IGAPÓ, que acelera projetos sociais incentivados na Amazônia Legal, dos 100 maiores investidores da Lei Rouanet em 2021, apenas 7 apoiaram projetos da região. A Amazônia Legal concentra apenas 2% dos incentivos fiscais brasileiros, sendo que representa 60% do território e 10% do PIB.

Ou seja, se queremos falar em desenvolvimento sustentável, a gente precisa pautar a descentralização de recursos, abrindo caminhos para que organizações e projetos do Norte e Nordeste do país sejam financiadas e promovam o bem-estar das comunidades locais. 

E nessa missão, segundo o Leonardo, nós vamos precisar de um esforço coletivo do Mercado, das OSCs e do Governo, que pode financiar os povos da floresta com programas de transferência de renda incondicionais.

 

Leonardo Letelier: No caso da Amazônia, eu diria que precisamos de todos esses elementos. É uma área com problemas super complexos e nenhum desses atores sozinhos vai dar conta sozinho. Tem uma parte do controle, que é do governo, de negócios escaláveis, e tem uma parte que não são, que precisam de subsídio, seja temporário ou permanente. O Terceiro Setor é interessante para testar políticas públicas em escalas menores. (…) A gente quer manter a floresta em pé. E cuidar da floresta não é, necessariamente, algo que gere renda pras pessoas permanecerem lá. E as bolsas ajudam a completar esse quadro.

 

ROBERTA: Os desafios são muitos, mas temos aí um horizonte de potencialidades… e pra falar sobre elas, vamos chamar o nosso entrevistado de hoje, o professor Rafael Ribeiro, professor na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG e coordenador do programa de pós-graduação em economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da federal mineira. 

Ele também é membro associado do Centro de Economia e Políticas Públicas da Universidade de Cambridge e se especializou em teoria macroeconômica.

 

HOST: Olá, Rafael! Seja bem-vindo ao nosso podcast!

 

RAFAEL: Olá, Roberta! Olá a todos! Muito obrigada pelo convite. 


HOST: Os dados da contribuição do terceiro setor no PIB brasileiro demonstraram a importância do setor para a economia do país, mas apesar dos números, a gente ainda enfrenta uma série de entraves na criação de políticas públicas para impulsionar o desenvolvimento do setor – como regulamentação fiscal diferente para operações sem fins lucrativos, acesso facilitado a crédito, taxação de fortunas, fim de taxas sobre doações, secretaria própria dentro do ministério da economia ou até um ministério, e outras benesses, hoje exclusivas de outros setores econômicos…

Na sua opinião, de que forma o terceiro setor pode se beneficiar dos dados trazidos nesta pesquisa para alavancar mudanças nas políticas públicas que façam com que, de fato, ele se transforme em uma potência da economia no país? 

 

RAFAEL: Antes de falar do contexto atual, precisamos voltar à história, especificamente quando o terceiro setor entra no debate econômico. Ele, como um todo, atua por organizações que são que estão na esfera privada, mas que atuam em funções de interesse público, muitas dessas, comumente, realizadas pelo Estado, mas não em monopólio exclusivo. 

 

Essa discussão começa a ganhar força no Brasil no final dos anos 90, em que passa a valer uma visão de que o Estado deve ser mais eficiente e deve, por sua vez, passar algumas das suas funções para serem exercidas pelo setor privado. 

 

Assim, nasce a estabilização de uma visão sobre a economia de um modelo único, no caso o liberal, em que o estado deveria reduzir sua participação de atuação na economia e deixar o setor privado exercitar as funções. Nesse contexto, o Brasil também passa a adotar uma série de reformas que vão no sentido da liberalização comercial, privatizações e redução da participação do Estado na economia. Assim, as organizações sociais e o terceiro setor ganham uma importância muito grande. Elas passam a ser “candidatos naturais” para assumir funções que outrora eram feitas pelo Estado. 

 

Mas essa é a crise do fim dos anos 90, já no início dos anos 2000 muita coisa mudou. Tem a mudança de governo, um de centro-esquerda do PT e que retoma, ou tenta retomar ainda que aos poucos, uma participação maior do Estado na economia e com essa atuação do Estado cresce também a participação das organizações sociais justamente porque elas atuam em um caráter de complementaridade ao Estado. 

 

Em resumo, com o aumento das demandas sociais e também da construção do Estado nesse processo, as organizações sociais também crescem, vale ressaltar que, nessa época, existia uma baixa regulação do setor. Isso acabou sendo utilizado como meios que foram capturados por agentes ou agentes privados com interesse não exatamente alinhados com interesse público e o que acabou gerando uma série de corrupção, o que, por sua vez, gerou a demanda pela regulamentação do setor. 

 

Essa é uma longa discussão, que nos leva até 2014 com o Marco Regulatório do Terceiro Setor. Ele consegue colocar regras claras para a atuação desse setor na economia uma vez que as organizações sociais atuam em parceria com o Estado em questões de interesse público, muitas vezes recebem também recursos do Estado e com isso elas têm que atingir certos critérios de governança, transparência e contabilidade para poder participar desses processos. E aí o que a gente tem? Em 2016-2017 aconteceu novamente uma virada de governo, agora à direita, e retomamos a visão de redução da participação do Estado e a sua atuação no processo de desenvolvimento econômico e social. Estamos neste momento hoje: atuação do Estado na economia muito fragilizada. 

 

É importante entender que: o que aconteceu nos últimos anos, tanto do desmonte das boas práticas públicas que foram construídas ao longo dos tempos quanto do financiamento, em termos de contratação de pessoal e precarização do serviço de um modo geral. O Estado abriu mão do fato de conduzir o processo de desenvolvimento econômico social, então é nesse contexto que as organizações sociais funcionam na ausência do Estado cobrindo funções essenciais, principalmente nas regiões mais periféricas, se intensificam as iniciativas para poder permitir a provisão de certos serviços em regiões que não são mais atendidas pelo Estado. 

 

A atividade do terceiro setor tem uma importância muito relevante em termos de PIB, mas ao mesmo tempo, não podemos pensar que isso extingue o Estado de cumprir suas funções em termos de planejamento e inclusão social. 

 

ROBERTA: Que são as funções calcadas na Constituição, independentemente de qual seja a bandeira do governo. Não se pode colocar tudo nas costas das ONG’s, a responsabilidade de prover saúde, educação, infraestrutura e tantas outras coisas, que são deveres do Estado. 

 

Quando saiu essa pesquisa a primeira coisa que eu fui fazer foi procurar qual é a participação de outros setores econômicos que aparecem muito mais na mídia, tem muito mais participação política organizada – na forma de federações, organizações setoriais e sindicato –  para fazer uma comparação. Como representante do terceiro setor temos que assumir a culpa de sermos menos politicamente organizados que outros setores econômicos capitalistas tradicionais. 

 

Podemos até fazer uma comparação com o número de empregos gerados pelo setor automotivo, que é tratado como um dos gigantes, e que, na verdade, é muito menor do que o número de empregos gerados pelo terceiro setor, e a gente vê isso na representação também dentro de políticas públicas econômicas, principalmente de incentivos pro setor automotivo que a gente não vê da mesma maneira acontecerem pro terceiro setor. 

 

Que políticas públicas fariam sentido para o terceiro setor? O que um país desenvolvido bem organizado tem, independente de quem esteja sentado na cadeira do executivo do Legislativo, que a gente deveria ter para que o terceiro setor tivesse uma participação econômica relevante e, principalmente, entendida como relevante pela população e pelos outros entes econômicos pelo Estado? Quando pedimos dinheiro não somos tão levados a sério quantos os outros. Você tem referências de outros países que lidam melhor com isso?

 

RAFAEL: O terceiro setor tem um papel fundamental na estruturação da sociedade como ela é hoje. A sociedade tornou-se muito mais complexa e os processos muito mais ágeis, o setor público tem restrições na sua própria constituição, que o impedem de atuar com a velocidade de diligência que a sociedade muitas vezes exige. Por exemplo, se você precisa fazer uma contratação de um serviço especial ou de comprar um equipamento para responder uma demanda emergencial, você tem que abrir uma licitação para comprar, contratar pessoal, abrir concurso…Ou seja, não é possível atender de imediato a demanda. 

 

A participação ativa e robusta do terceiro setor em parceria com o setor público é essencial para o bom funcionamento da economia como um todo certo. Porém, no terceiro setor as organizações sociais enfrentam uma série de gargalos de desafios que a impedem, por exemplo, de construir uma articulação política mais coesa e mesmo de atuar de forma mais objetiva. 

 

É um setor que, justamente pela sua própria característica, ele é muito difuso e pulverizado, o que torna muito difícil encontrar pontos consensuais nas demandas do setor, como é possível encontrar em setores menores, porque são menos agentes e com interesses mais alinhados; no terceiro setor os agentes são heterogêneos. Com esse problema de atuação política se torna muito difícil operacionalizar sua atividade.

 

São dificuldades na formalização mesmo, ou seja, quanto mais necessária é uma organização social que surgem o contexto de uma região mais fragilizada e periférica mais dificuldade de se formalizar. Muitas organizações surgem para resolver o problema de uma comunidade específica e também enfrentam mais dificuldades para atingir certos critérios de formalização, o que também barra a participação em editais de financiamento público, por exemplo. Você tem que ter uma uma contabilidade robusta para poder prestar conta da utilização do recurso público e a captação de recursos tem dificuldade no treinamento e manutenção pessoal. 

 

Essas são questões objetivas que as organizações, para poder atuar de forma consistente, têm uma um grau de de fugimento e caimento muito rápido e volátil. É mais difícil criar colisões sustentáveis ao longo do tempo para pressionar em torno de pautas comuns. 

 

Quando pensamos em países da Europa, como a Inglaterra por exemplo, com participação um pouco mais forte das organizações sociais, elas enfrentam os mesmos problemas que nós aqui no Brasil, mas em menor grau, porque lá a participação do Estado é muito mais robusta, ainda que tenha tido uma uma redução significativa nos últimos tempos. Ainda sim, as pessoas identificam muito claramente qual é a atuação do Estado, onde está a prestação de serviço público e as associações sociais conseguem também se inserir de forma mais suave nesse processo. No Brasil, para além da instabilidade do serviço público, você acaba desfazendo uma cadeia grande de serviços do terceiro setor associados ao setor público, para reconstruir isso novamente é um processo sim. Diria que esses são os principais desafios para o setor hoje no Brasil.

 

Agora, você perguntou de possíveis políticas, né? Quanto mais específico são os nichos que uma determinada organização social vai atuar, mais específica é mais difícil sua formalização. Por exemplo, uma barraquinha de produtos agroecológicos sustentáveis na periferia, muitas vezes eles utilizam o que é produzido apenas na própria comunidade, é mais difícil formalizar do que iniciativas focadas em hospitais, por exemplo. 

 

Iniciativas muito específicas precisam de um olhar diferenciado. Muitas vezes as organizações sociais não vão conseguir ter um um setor de contabilidade específico, é preciso que o Estado ajude a planejar o cenário de atuação dessas organizações mais fragilizadas, porque elas são essenciais para gerar uma permeabilidade maior entre as necessidades civis e o setor público. Esse último, por sua vez, não consegue identificar todas as demandas da sociedade civil, então é preciso que ele seja permeado, então ele precisa, de alguma medida, garantir a promoção da sustentabilidade e a continuidade dessas iniciativas. 

 

ROBERTA: Rafael, essas organizações surgem da ponta vendo os problemas com uma lupa que o Estado nunca vai ter. A gente tá num ponto central desse momento econômico e das discussões que a gente tá vivendo é a reforma tributária, né? A gente tem no Brasil uma certa quantidade de políticas tributárias que favorecem as organizações do terceiro setor, como convênios públicos, diferentes leis de incentivo fiscais em níveis federais, estaduais e municipais, mas por outro lado a gente também ainda tem muitas barreiras para empresas e pessoas físicas doarem em recursos, como um imposto sobre grandes fortunas, sempre discutida, mas nunca concretizada. Como você acha que a gente pode promover uma reforma tributária que ajude a redistribuir renda e que impulsione a cultura de doação e o terceiro setor? 

 

RAFAEL: Essa é uma questão muito complicada. A reforma tributária que hoje tem sido discutida no Brasil, eu diria que ela não toca diretamente essas questões que você colocou. O sistema tributário do Brasil é confuso, ele impõe uma série de custos desnecessários à atividade produtiva no país em todos os setores e a reforma visa corrigir essas distorções do ponto de vista setorial e também melhorar, digamos assim, a distribuição entre as unidades federativas. Ou seja, hoje o imposto é cobrado na origem de onde é produzido, São Paulo, por exemplo, produz e exporta muito para outros lugares e acaba arrecadando muito mais do que os lugares que, de fato, consomem os bens. 

 

A reforma propõe que o imposto seja cobrado no destino e não na origem, isso vai tentar reduzir as desigualdades regionais do ponto de vista arrecadatório, contudo a reforma não toca no ponto essencial: quem de fato paga o imposto de renda no Brasil? Nessa divisão entre o imposto direto e indireto, ou seja o cobrado na renda e o indireto nos bens e serviços, essa divisão não está no escopo das discussões da reforma tributária. 

 

Um país da América Latina, em particular o Brasil, são muito desiguais, é muito difícil a gente pensar que nós vamos conseguir extrair um excedente por meio da taxação apenas reformando o sistema de cobrança. A maior parte da renda está concentrada nas classes mais altas, então é preciso se pensar formas de tributação que sejam progressivas ou mais proporcionais onde está a renda. Taxar bens e serviços faz com que ricos e pobres paguem a mesma quantidade de imposto embutido no bem que consomem, isso é uma característica tradicional de países em desenvolvimento.

 

São exportadores primários, têm oligarquias rurais muito bem articuladas e fortes em concentração de terra e exploram bens naturais. O Estado tem dificuldade de taxar esse excedente então para custear as funções básicas do Estado acaba se impondo um custo maior sobre a taxação dos bens e serviços, o que é altamente regressivo.

 

Em países avançados, tradicionalmente melhores institucionalmente na sua capacidade de extração de excedente, conseguem migrar essa divisão e taxar mais proporcionalmente a renda do que os bens, o que melhora a competitividade do setor produtivo, infelizmente essa discussão toda não está sendo feita diretamente na reforma tributária.

 

O assunto tem restrições, principalmente sobre como viabilizar politicamente a necessidade de taxar as elites. Quando se fala em taxação, os mais ricos argumentam que não vão mais investir no país, o que vai afetar os empregos, os políticos ficam com medo e o assunto não segue adiante. Mas ainda é possível criar estratégias para poder realizar esse processo certo. 

 

Talvez uma medida nesse sentido seja deixar claro os benefícios de uma reforma tributária progressiva para a população se você só falar “Vamos taxar as elites” é difícil você conseguir o apoio popular para esse tipo de medida, mas se você atrela isso na narrativa de “Taxar as elites melhora o serviço de Educação, Saúde ou mais algo mais palpável” mais fácil você construir uma colisão pelas bases que gera uma pressão maior. A discussão da reforma tributária está muito centralizada em economistas e dos benefícios do crescimento do PIB, por exemplo, mas eu diria que isso tem um poder muito baixo de argumentação sobre a população. 

 

Voltando para as organizações de terceiro setor uma reforma tributária que conseguisse fazer uma transição em direção a um tributo proporcionalmente maior sobre a renda e principalmente as vendas maiores do que sobre os produtos poderia auxiliar nesse processo. Eu acho que o terceiro setor está mais próximo muitas vezes da população e da política pública que é ofertada na ponta, ele pode ser utilizado nesse processo de barganha. 

 

Temos que viabilizar a atuação do terceiro setor e de iniciativas específicas para ajudar na construção de uma colisão de baixo para poder favorecer uma narrativa em prol de uma reforma tributária mais progressiva. Isso exigiria uma articulação muito grande, mas ainda assim eu acho que é um caminho possível. Para finalizar, o terceiro setor pode ser um aliado na construção da narrativa em torno de uma reforma tributária de fato progressiva para que se consiga financiar uma estratégia de desenvolvimento econômico social.

 

ROBERTA: Rafael, quando a gente conversava ainda antes de chegar aqui na gravação, você comentou sobre os riscos que a gente corre diante de um crescimento do terceiro setor num cenário de redução do Estado, e os problemas das organizações ficarem mais e mais sujeitas a interesses privados de quem as financia, a gente tem visto, por exemplo, nos Estados Unidos, a filantropia como o quinto poder agora. 

 

A filantropia com super ricos financiando questões sociais que são dos seus próprios interesses, isso causa um desbalanceamento da representação social. Existem muitas reclamações que grupos progressistas liberais tem mudado também forçado políticas públicas mais progressistas.

 

Como que a gente vai conseguir equilibrar essa balança? Tem algum tipo de controle possível para que esses financiamentos sejam doações via incentivos fiscais não limitem a atuação da organização das organizações para que elas não precisem criar projetos apenas que agradam aos seus financiadores? Isso é usado para desequilibrar o poder democrático? 

 

RAFAEL: Eu começaria a resposta de uma forma bem e, talvez, rude: o rico tem que pagar imposto. Por que isso que você comentou tem acontecido? Nos Estados Unidos é comum o rico, por meio da sua capacidade de lobby, escolher se ele vai pagar o imposto para o Estado ou se ele vai pagar via doação. É como se ele estivesse pagando imposto, mas ele está, na verdade, recuperando  uma destinação de recursos. Ele paga imposto, mas pede em troca o direito de ordenar o imposto para atividades de interesse mais alinhadas aos seus próprios interesses. 

 

O Estado, levando em consideração o interesse público, aloca recursos em atividades de maior ou menor interesse público tendo em vista um aumento do bem-estar social. Agora, quando o rico, ao invés de pagar o imposto ele doa, ele financia outras atividades que, na verdade, são demais interesses da minha atividade pessoal. O problema? Nada garante que a atividade financiada pela doação do rico seja um interesse social de fato. 

 

Isso passa muito pela redução da capacidade de atuação do Estado nos últimos tempos. Não tem como pensarmos no processo de desenvolvimento econômico social abdicando da capacidade de planejamento do Estado, principalmente em economias altamente desiguais e oligopolizadas, como é o caso do Brasil. Tem atividades que dificilmente conseguiriam ser tentadas por meio de doação. O SUS, por exemplo, é estruturado de cima para baixo certo. O Albert Einstein é um hospital de excelência, privado, mas que dificilmente sobreviveria sem recursos públicos financeiro de pesquisa, compra de equipamentos e uma série de questões. 

 

Você tem uma série de serviços mais básicos e um aumento da complexidade do serviço vai sendo alocado em outras macrorregiões. E aí você vai conseguir subir na escala de complexidade do sistema e especializado. Isso exige um planejamento central de outros setores na infraestrutura de provisão de rodovias, energia elétrica e saneamento. Isso exige uma capacidade de planejamento, captação de recursos, alocação e ordenamento desse recurso em localidades, o que exige uma discussão política e um planejamento mais centralizado. Dificilmente você consegue viabilizar um grande investimento em estrutura de uma hidrelétrica pensando apenas em doações de empresários que, dificilmente, vão se juntar para prover esse tipo de bem e sem isso é inviável a gente pensar em qualquer outro tipo de atividade.

 

Seja na atividade industrial ou no terceiro setor, do mais básico ao mais sofisticado, ninguém vai conseguir operar de forma eficiente sem uma provisão e acesso à energia elétrica, sem estradas e sistema de transporte público eficiente. Você exige que haja um planejamento estatal por trás, é muito difícil que o setor privado vá conseguir fazer isso porque o setor privado muitas vezes não vai fazer um investimento onde ele não consegue precificar o risco, quem precisa fazer isso muitas vezes é o setor público, que, por sua vez, precisa estar muito bem equipado com profissionais de capacidade de financiamento, captação de recursos privados e no planejamento como um todo.

 

Em resumo, a doação tem um problema de base que é fundamental, quem está decidindo a locação desse recurso não é uma autoridade democraticamente eleita, mas sim quem pode ordenar esse recurso para interesses privados. As atividades essenciais para o funcionamento do terceiro setor da economia como um todo exigem um planejamento e execução com forte presença do Estado. 

 

ROBERTA: Rafael, esse é o sonho! E, para quem quiser acompanhar o seu trabalho dos grupos de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, por onde a gente começa? Vocês estão em algum lugar nas redes sociais? 

 

RAFAEL: Visitem o site do CEDEPLAR, lá tem o perfil de todos os professores. Não sou muito twitteiro, mas eventualmente posto pesquisas por lá. 

 

ROBERTA: Obrigada Rafael pela sua participação e pela aula particular que você nos deu hoje. Muitas ideias saíram daqui novas discussões para aprofundar um tema que é muito complexo, muito sistêmico, mas também muito necessário da gente debater de forma organizada pra gente poder fazer o lobby para as mudanças necessárias pro Brasil e para o nosso setor.

 

RAFAEL: Eu que agradeço! Um abraço e até a próxima.

 

ROBERTA: E se você, como a gente, ficou um desassossego só com as questões do professor Rafael e do Leonardo, senta que lá vem dicas quentinhas sobre o tema do episódio. Está começando o “Pra Saber Mais”!

 

ARTUR: E para começar, a gente sugere o estudo “A importância do Terceiro Setor para o PIB do Brasil e suas regiões”, que deu origem a esse episódio aqui. 

 

O documento, que foi produzido pelo Movimento por uma Cultura de Doação, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e Sitawi Finanças do Bem, pode ser baixado gratuitamente no site da Sitawi e traz os dados que citamos ao longo deste episódio. Aproveite pra prestar atenção às citações de especialistas ao longo do estudo!

 

E para quem tá no pique dos PDFs, mais uma dica: a última edição do estudo Perspectivas para a Filantropia no Brasil, do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social! IDIS

 

ROBERTA: E para dar aquela força pra podosfera, eu vou indicar a entrevista que o podcast da revista Gama fez com a Aline Odara, diretora-executiva e cofundadora do Fundo Agbara. 

 

Ela conversou sobre os desafios que a filantropia negra enfrenta no Brasil e as potências que temos nesse cenário. A gente também recomenda conferir toda a edição que a revista dedicou à cultura de doação!

 

ARTUR: E olha, se o Terceiro Setor representa uma alternativa e tanto para uma economia de desenvolvimento sustentável, tem pesquisador que o aponta como uma via possível para uma economia de pós-crescimento. Se você lê em inglês, a gente recomenda o artigo dos economistas Jennifer Hinton e Donnie Maclurcan, publicado na revista Ephemera.

 

ROBERTA: Por fim, esse cenário promissor exige capacitação, né? E aqui, a gente vai te indicar a Conjunta, plataforma que busca promover o desenvolvimento institucional de OSCs. Tem estudos, cursos, livros e artigos gratuitos para organizações de diferentes áreas! Acesse em conjunta.org

 

ROBERTA: Artur, essa entrevista foi bem cabeçuda, e nós deixamos no episódio só metade dela porque ela ficou com quase uma hora de conversa do Rafael. Foi literalmente uma aula e eu queria aqui abrir aqui meu coração para os nossos ouvintes que quando a gente entra nesses assuntos que envolvem questões políticas e macro que estão em volta do nosso setor a gente geralmente dá uma preguicinha tanto por não ter conhecimento quanto por já estar tão envolvido com a nossa causa específica e já cheio de problemas para lidar e falta tempo para se preocupar com todas as questões em torno do setor. 

 

Mas, na verdade, o que mais me impactou depois de ler esse estudo, foi pesquisar a importância dos outros setores na participação no PIB e é muito chocante você pensar que, por exemplo, existe um ministério dedicado ao turismo, uma empresa brasileira para o mesmo (EMBRATUR) e ele é um setor muito menor em questão representatividade econômica e impactos positivos em geração de emprego e conhecimento. E, mesmo assim, os gestores públicos não nos dão a devida atenção, estamos excluídos da conversa sobre reforma tributária, setores muito menores estão na lista de incentivos econômicos, o que é chocante.  

 

Nós estamos em todo lugar e, ainda assim, não temos representação política e nem dentro do nosso setor de forma organizada. Embora existam movimentos e associações de ONGs, não temos força suficiente comparada com outras federações. O que fica no fim, pra mim, é: como dormir com isso? Até quando a gente vai evitar botar a mão na merda e mexer nesse caldeirão para nos obrigar a nos informar e discutir mais e a pensar as coisas que não podem ser resolvidas do ponto de vista individual, nem do ponto de vista de uma organização e nem do ponto de vista de uma causa específica, mas que precisam ser resolvidas pensadas a partir da sociedade como um todo e do setor como um todo de uma forma muito mais ampla e complexa.

 

Enquanto a gente estiver olhando só para nossa causa, projeto ou organização, estaremos muito longe de conseguir os resultados ou as ferramentas que são necessárias para transformação que a gente quer ver. E isso só vai ser possível a hora que a gente decidir enfiar a mão na merda. 

 

ARTUR: Concordo que a gente tem que olhar mais para o setor de forma mais profunda, mas tem muitas organizações, principalmente as que trabalham com tipo de representação política e institucional que circulam lá em Brasília e nos corredores para vender o seu peixe tudo ali fazem isso muito bem, mas, no fundo, a questão é que um país como o nosso, é do interesse total das lideranças manter um quadro de desigualdade e opressão, porque essa estrutura de poder conhecida só se mantém por causa disso. Você só oprime quando tem gente que tá muito necessitada precisando desesperadamente de qualquer apoio, assim é possível comprar votos, por exemplo. 

 

Não vamos nos aprofundar tanto, mas eu queria aproveitar o gancho para fazermos uma mea culpa, mas alguns episódios atrás, Joana Mortari, nossa colega, lembrou de forma oportuna algo que falamos que poderia ser mal interpretado. Deu a entender no episódio que a função do terceiro setor seria cumprir as funções que o Estado não cumpre, e não é isso, definitivamente. 

 

Apesar de ser um setor potente que gera um impacto econômico importante, ainda é entendido como algo anexo e não como algo próprio, por isso não tem o seu ministério ou suas representações oficiais porque parece que ele só tá ali tapando os buracos e, que, daqui a pouco você corrigindo não vai mais precisar disso. Em países desenvolvidos, o setor social existe por si só, e tem sua estruturação e lugar próprio para desenvolver suas potencialidades de crescimento e aumento do impacto como qualquer outro setor aí que impacta na economia. Obrigado pela crítica muito construtiva!

 

ROBERTA: E a gente finaliza o episódio de hoje, mas nosso papo continua nas nossas redes sociais. Lá no LinkedIn e no Instagram @ institutomol. E se você curtiu esse episódio, vai lá e deixa seu comentário no episódio, compartilhe com mais pessoas e também, bora distribuir aquelas estrelinhas no Spotify pra que essa conversa chegue a mais pessoas…

 

ARTUR: Esse podcast é uma produção do Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior. Esse episódio teve produção de Ana Rodarte. O roteiro final e direção são de Ana Ju Rodrigues e Vanessa Henriques, assistência de gravação de Vitória Prates, arte da Glaucia Ribeiro e divulgação de Júlia Cunha, todas do Instituto MOL. A edição de som é do Bicho de Goiaba Podcasts. 


Até a próxima!

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