TRANSCRIÇÃO EP #94 – O terceiro setor existe para cobrir as falhas do Estado?

ROBERTA:  Salve, salve nação doadora!

Tá no ar o seu podcast favorito sobre cultura de doação, produzido pelo Instituto MOL com apoio do Movimento Bem Maior e, atenção para a novidade, com a divulgação do Observatório do 3º Setor! 

Aqui, você fica por dentro dos assuntos do momento na filantropia e na cultura de doação,

a partir de informações, pesquisas e entrevistas com importantes personagens do setor no Brasil.

Tudo de forma clara e objetiva, sem enrolação

 

Eu sou Roberta Faria

 

ARTUR: Eu sou Artur Louback

 

E, semana sim, semana não,  a gente te convoca a vir junto nessa conversa, pra inspirar mais e mais pessoas e empresas a doar! Doar com propósito, com consciência e com o coração!

 

Afinal,

 

ROBERTA/ARTUR: aqui se faz, 

aqui se doa!

 

SOBE SOM

 

ROBERTA: Olá, estamos de volta!

 

E nosso assunto de hoje talvez pareça muito básico à primeira vista. Afinal, a gente já vem de algumas temporadas do podcast e em alguns dos últimos episódios tratou de temas como o impacto do ChatGPT e a descentralização de recursos no terceiro setor. Então, será que faz sentido voltar pro começo e questionar: qual o papel do terceiro setor na sociedade?

 

Bom, faz porque essa pergunta do título é muuuuito comum, e tudo que tá na boca das pessoas merece nossa atenção aqui no podcast. Existe uma ideia bem generalizada de que as Organizações da Sociedade Civil existem pra resolver os problemas que o Estado não consegue solucionar. Ou seja, se o governo não consegue promover uma educação adequada, dar condições de vida mínimas à população ou proteger o meio ambiente, aí entra o terceiro setor pra, digamos, tentar tapar esses buracos.

 

Pensando assim, até parece fazer sentido… Mas será que é isso mesmo?

 

Pra discutir o tema com a gente, hoje vamos receber o cientista político Adrian Gurza Lavalle, que é professor do Departamento de Ciência Política da USP, e coordena o Núcleo de Pesquisa Democracia e Ação Coletiva no Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Entre os principais campos de estudo dele, estão a sociedade civil e a teoria política. Ou seja, ninguém mais qualificado que ele pra falar sobre o lugar do terceiro setor dentro da nossa sociedade.

 

ARTUR: E olha, Roberta, acho que tem um fundo de verdade nessa coisa toda de atuar nos pontos que o Estado não consegue atender. Afinal, o terceiro setor atua em questões de educação, saúde, proteção ambiental e várias outras que estão ali no guarda-chuva de responsabilidades dos governos, mas, seja por falta de recursos ou omissão mesmo, não recebem o apoio necessário. Só que a gente sabe que o trabalho do terceiro setor vai muito além de ser um tapa-buraco.

 

Em 1997, o Banco Mundial definiu o setor como “organizações privadas que realizam atividades para reduzir o sofrimento humano, promover o interesse dos pobres, proteger o meio ambiente, prover serviços sociais básicos e desenvolver comunidades”. 

 

Ou melhor, é o conjunto de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos que agem, em várias frentes diferentes, em prol do que a gente chama do bem comum. Basta olharmos pra um estudo super recente sobre o impacto do terceiro setor na economia brasileira pra entender o tamanho da importância dele na sociedade.

 

“Uma pesquisa mostra o quanto esse setor é importante na cadeia produtiva do país. O terceiro setor é formado por organizações da iniciativa privada sem fins lucrativos que prestam serviços pra sociedade por meio da educação, saúde e atividades artísticas.”

LEONARDO LETELIER “A imagem que vem na mente das pessoas quando a gente fala de terceiro setor é uma ONG pequenininha, eventualmente na comunidade, cheia de voluntários, pessoas muito bem-intencionadas fazendo algum trabalho na ponta. Na verdade, o terceiro setor é um conjunto grande de organizações, mais de 800 mil organizações no Brasil inteiro, de vários tamanhos, de vários tipos, com várias causas: educação, saúde, meio ambiente.”

“O estudo mostra que quase 6% dos postos de trabalho estão no terceiro setor. São seis milhões de trabalhadores. A participação desse setor no PIB brasileiro é de mais de 4%. Pra efeito de comparação, é mais que a fabricação de automóveis e próximo do setor agrícola.”

 

ROBERTA: Só de escutar esse trechinho da reportagem do Jornal Hoje, acho que dá pra entender o tamanho do papel do terceiro setor dentro da sociedade. Vocês ouviram que a participação no PIB fica super próxima da do setor agrícola, um dos carros chefes no desenvolvimento do país? No início da pandemia, em 2020, mais de 86 milhões de brasileiros receberam apoio por meio de doações e da ação de ONGs, num esforço coletivo em que o setor teve uma contribuição tão crucial quanto a do poder público.

 

Pra entender melhor essa relevância, vale a pena voltar um pouco no tempo pro momento em que o terceiro setor surgiu. Por aqui, organizações como a Santa Casa de Misericórdia existem desde o período colonial, quando elas eram em sua grande maioria vinculadas à Igreja Católica. Até por isso, historicamente boa parte da filantropia por aqui é diretamente ligada à religião.

 

Apesar de existirem há muito mais tempo, as ONGs só foram regulamentadas na década de 1930, no governo Getúlio Vargas. Durante a ditadura, algumas delas tiveram uma importância imensa na luta pela democracia, juntando-se aos movimentos sociais da época. Isso já dá uma dimensão bacana de como é amplo o papel do setor na sociedade.

 

ARTUR: O termo “terceiro setor” em si foi criado na década de 1970 lá nos Estados Unidos e, com o tempo, passou a ser usado no resto do mundo. Por aqui, o setor teve uma conquista recente super importante, que foi o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, de 2014. Ele ajudou a criar uma legislação mais clara pra regulamentar as parcerias entre as OSCs e o Estado.

 

Então, diferente da visão que muita gente tem sobre o setor, ele não existe só pra consertar os problemas da administração pública. Tanto que, em inúmeros casos, as organizações constroem parcerias tanto com o poder público quanto com empresas privadas pra agir de forma conjunta em diferentes áreas.

 

Mas também vale lembrar que, apesar dessas parcerias e do apoio que o Estado ocasionalmente dá às ONGs, elas estão longe de ser subordinadas ao governo. Aliás, uma pesquisa da Abong já mostrou que menos de 3% das organizações brasileiras acessam recursos do governo hoje. Pelo contrário, em vários momentos, como o período da ditadura, por exemplo, elas fazem o papel de questionar e até antagonizar governos que tenham atitudes indevidas ou antidemocráticas.

 

PODCAST BRASIL ODS, DO OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, DO DIA: “A sociedade civil, ela de certa maneira tem uma capacidade de resposta na medida que espaços e oportunidades são criadas. Essa criação de espaço e oportunidade depende muito da sociedade se ela tiver nos seus governantes governantes que entendem o papel da sociedade civil. Se você fizer uma pergunta hoje pros políticos brasileiros de ponta, pega quem tá na liderança de Congresso, quem tá na liderança dos ministérios, e você faz uma pergunta pra eles, o que é essa sociedade civil, eu duvido que eles saibam. Simplesmente porque a sociedade civil, ela aponta virtudes e aponta erros. E o político fica com medo do erro. Em função do erro, ele pega e nega esse papel que a sociedade civil pode ter.”

 

ROBERTA: O ótimo questionamento que acabamos de ouvir foi feito pelo Marcos Kisil, que é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e fundador do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, o IDIS. Ele integra um episódio do podcast “Brasil ODS”, do Observatório do Terceiro Setor, que tratou da relação entre as organizações da sociedade civil e a democracia lá em 2021.

 

Só pra explicar melhor pra vocês o contexto, naquele momento um grupo de 29 entidades do terceiro setor se uniu pra lançar uma campanha em defesa da democracia no Brasil. Esse projeto foi uma reação a atitudes consideradas antidemocráticas ligadas ao governo Bolsonaro, como ataques à liberdade de expressão e de imprensa e cerceamento de posicionamentos políticos de oposição.

 

Então, além de agir de forma organizada pra atender diversas demandas seja de forma conjunta ou paralela aos governos, o terceiro setor ainda assume esse papel de monitoramento e pressão sobre o Estado. Que, vamos combinar, é essencial pra política e pra própria sociedade.

 

Aliás, tem uma definição que eu particularmente acho ótima e que ajuda a resumir toda essa luta do setor em prol da democracia. Quem fala agora é o sociólogo e consultor na área de desenvolvimento social Domingos Armani, numa entrevista aqui mesmo pro podcast. Vamos ouvir!

 

PODCAST AQUI SE FAZ, AQUI SE DOA: “O papel das organizações da sociedade civil é um papel importantíssimo na disputa pela qualidade da democracia. Dizendo de outra forma, a qualidade, a profundidade da democracia que a gente pode ter também tem a ver com o debate do papel dessas organizações. Então tem uma disputa real sobre qual é o papel das ONGs. Se a gente pegar o período onde elas eram fundamentalmente conectadas com o valor da solidariedade, elas ameaçavam muito menos, então essa disputa sobre o papel delas era muito low-profile, uma coisa muito de baixa intensidade ocasionar alguma denúncia de corrupção aqui por interesses político-partidários.”

 

ARTUR: E acho que não tem como falar da participação política das organizações sem abordar o advocacy. Na prática, significa identificar e promover determinadas causas, seja pra mobilizar a opinião pública ou pressionar a criação de políticas públicas e mudanças naquelas não estejam funcionando como deveriam.

 

Tem muito a ver com aquilo que a gente sempre fala sobre abordar causas com um olhar sistêmico. Então, pra de fato impactar a sociedade, é crucial promover essa mobilização em diferentes espaços, dentro e fora da sociedade civil.

 

No caso da interlocução política, é o que chamamos de “lobby do bem”. Ou seja, uma busca por influenciar e conseguir apoio nas diversas camadas da democracia, do Congresso ao Executivo, pra fazer avançar pautas que favoreçam o bem comum, reduzam as desigualdades e promovam a justiça social.

 

Aliás, participar da política não significa se filiar a um partido. É o que vai explicar melhor agora o Vitor Oliveira, cientista político e diretor da consultoria Pulso Público.

 

VITOR OLIVEIRA: “Você ter uma diversidade de atores organizados, participantes, atuantes na política é algo fundamental. E isso precisa obviamente ser tratado desde cedo. Educação política é algo que infelizmente no Brasil a gente acaba tendo uma ideia muito formalista do que ela deveria ser, quando ela deveria ter uma prática muito maior. Participar de associações é uma maneira também de educar as pessoas politicamente e prepará-las pra ser cidadãos e cidadãs, enfim. Mas principalmente entender que a gente pode não apenas por meio de partidos políticos, por meio eventualmente se uma pessoa, por exemplo, passa num concurso público… Tem várias maneiras de participar das decisões que são tomadas e das políticas públicas, mas também atuando por meio, com organizações da sociedade civil.”

 

ROBERTA: A Pulso Público, inclusive trabalha junto a organizações e empresas com comprometimento socioambiental pra ajudá-las a se tornarem agentes ativos na formulação de políticas públicas. Pra isso, oferecem capacitações específicas em advocacy e orientação sobre as melhores práticas pra participação política.

 

Então, muito mais do que um setor que tenta resolver as falhas do Estado e das diversas camadas do governo, as organizações da sociedade civil podem e devem influenciar a própria forma de fazer política.

 

Aqui no Brasil, o advocacy ainda está engatinhando, até porque, como já falamos aqui no podcast, a grande maioria das ONGs não tem recursos suficientes nem pra se manter. Então em muitos casos falta estrutura, planejamento, estabilidade financeira e um know-how de como chegar a esses agentes políticos. Porém, instituições como o Instituto Igarapé, o Politize! ou grandes organizações internacionais, a exemplo do Unicef e do Greenpeace, já vêm atuando fortemente com advocacy.

 

VITOR OLIVEIRA: “A gente tem na nossa Constituição uma série de direitos que são assegurados. E infelizmente o Estado é falho em assegurá-los. Agora, a sociedade civil pode, e os cidadãos por meio das organizações podem não apenas agir na ponta. Dificilmente as organizações filantrópicas vão ter escala, vão ter a capacidade de de fato suprir as falhas do Estado. Então elas podem se organizar pra defender e promover suas causas. E pressionar o Estado e disputar politicamente as prioridades da sociedade, as prioridades que os representantes da sociedade vão escolher pra que essas políticas públicas sejam de fato levadas a cabo. Então, mais do que complementar ou suplementar o Estado, a sociedade civil pode e deve moldar as políticas públicas participando da política.”

 

Artur: Agora que o Vitor nos explicou um pouco mais sobre o impacto do advocacy e da participação do terceiro setor na política, fica mais fácil de entender como todas essas instituições se relacionam.

 

E está chegando a hora de bater um papo com o nosso entrevistado de hoje. Além de professor da USP e pesquisador do Cebrap, o Adrian Lavalle também atua no Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão de Estudos da Metrópole e é editor-chefe da Revista Brasileira de Ciências Sociais. 

 

Ele é autor de livros como “Intermediação e Representação na América Latina” e “O Papel da Teoria Política Contemporânea”, em que o tema da participação e do advocacy pela sociedade civil organizada está sempre presente.

 

Vamos ouvir agora a conversa que a Roberta teve com ele:

 

ADRIAN: Muito obrigado pelo convite! É ótimo estar aqui com vocês.

 

ROBERTA: Bom, então vamos em frente. Primeiro, Adrian, queria ouvir de você um pouco de como são as suas pesquisas relacionadas à atuação da sociedade civil em relação à estrutura política. Como esses dois pontos estão relacionados num país como o Brasil?

 

ADRIAN: Há algum tempo eu ando trabalhando com organizações da sociedade civil. No começo, as pessoas que estudavam sociedade civil, mesmo em contextos distintos, se referiam a uma única sociedade civil, como se as diferenças não existissem. Minha pesquisa partiu dessa indagação, comecei com análise de rede comparando as diferentes funções em organizações diversas. Depois passei para a própria ação e trajetória das ONGs no país e qual o papel delas junto à política pública. 

Ao longo dos anos, houve um importante crescimento das funções desenvolvidas pela sociedade civil, o que gera uma incidência nas políticas públicas. Na minha pesquisa eu sugiro que esse seja realmente o caminho que deveríamos seguir. Boa parte das organizações brasileiras são compostas, basicamente, de atores coletivos.

ROBERTA: E, pra ir direto ao ponto, qual é o papel do terceiro setor na nossa sociedade hoje? De fato, ele existe pra resolver aquilo que o Estado não consegue? Ou tem um alcance maior que esse?

 

ADRIAN: Se eu tivesse que explicar para um leigo, eu diria o seguinte: nós temos o senso comum de que a presença de um Estado forte faz com que não seja necessária a presença de uma sociedade civil forte e organizada. Essa é uma compreensão inadequada, não apenas do ponto de compreensão do papel da sociedade civil, mas mesmo do ponto de vista empírico. Nós temos inúmeros casos em que essa relação não se constrói desta forma, uma sociedade civil mais forte não implica, necessariamente, em um Estado mais fraco, e vice-versa. 

 

O ideal é que existam esses dois polos, e que ambos sejam fortalecidos, e eles são fundamentais para nossa sociedade. Ambas dependem de condições para que isso aconteça. Por exemplo, uma sociedade civil forte depende de condições promovidas por Estados fortes, como legislação, dedução de impostos, supervisionar e fiscalizar missões da sociedade civil, e o Estado se beneficia enormemente disso. Há diversos papéis desempenhados pela sociedade civil que descarrega o Estado, além das coisas boas que a relação de complementaridade entre Estado e ONGs e essa complementaridade não deve ser entendida como “A sociedade civil faz aquilo que o Estado não faz”

 

A sociedade civil funciona bem porque é onde se produz uma certa articulação de uma parceria. O que eu tenho estudado, do ponto de vista político, é como a Constituição afeta a sociedade civil. Os Estados são, mutuamente, constitutivos, ou seja, eles se constituem com as capacidades da sociedade civil. É um longo processo de interação e diálogo entre esses dois polos. 

 

Se você olhar para muitas áreas da política pública no Brasil vai perceber que muita coisa só foi possível graças a interação entre Estado e sociedade civil e vice-versa. Como as políticas, extremamente bem-sucedidas, da AIDS no país, que é algo valorizado no mundo inteiro, a sociedade civil teve um papel fundamental nisso. Então, é uma relação mútua entre Constituição e ONGs. 

 

Vamos pensar na área de assistência social, em lugares que o Estado não chegava, as ONGs estavam lá prestando serviços. A Constituição observando esse movimento buscou resolver essa incapacidade, se não fossem as organizações presentes e fazendo “barulho” sobre o assunto, a Constituição nunca teria mudado. Sempre tem alguém lá na ponta trazendo diálogo, mostrando a abordagem e compreensão sobre como tratar esse movimento. Essa pessoa que tá na ponta acompanha os circuitos, conhecem os fluxos e sabem como e com quem falar. 

 

Dando um exemplo, organizações do terceiro setor que trabalham com pessoas dependentes químicas. Eles trabalham nesse meio, conhecem as pessoas, às vezes há anos, sabem como abordá-los, então, na política podem fazer esse papel, de trazer o diálogo porque estão mais “por dentro” do que o Estado. O Brasil é um ótimo exemplo, temos diversas políticas públicas maravilhosas nesse sentido.

 

ROBERTA: Adrian, muito obrigada pela explicação! Faz todo sentido. Até na constituição de muitas organizações a gente vê que muitas partem de uma ausência do Estado para fundar uma organização, para se organizar como uma comunidade e com a sociedade, mas o trabalho consegue mesmo ser amplificado quando acessa os recursos do Estado. A gente sabe, pela história do terceiro setor que, embora o termo tenha surgido aí somente na década de 70, a sociedade civil vem se organizando há muito mais tempo que isso. Dá pra dizer que o lugar desse setor foi mudando com o tempo dentro da sociedade ou continuou sempre mais ou menos o mesmo?

 

ADRIAN: Eu diria que aconteceram mudanças importantes aconteceram em vários períodos históricos. Décadas mais ou menos democráticas são cenários diferentes. Existe uma certa tendência a entender que a sociedade civil tenha “surgido” no Brasil no contexto da redemocratização, o que é uma compreensão bastante limitada da sociedade civil. A sociedade civil está ali há muito tempo. Se você voltar ao século 19 você tem associações diversas. A filantropia e a assistência social tem uma longa tradição. A sociedade civil brasileira é antiga, assim como em outros países da América Latina e nos Estados Unidos. 

 

Quando a gente pensa no terceiro setor eu gosto de dizer que é um setor extremamente diverso então para entender as mudanças você tem que entender um pouco como que ele está configurado. Temos, em média, 250 mil organizações do terceiro setor no Brasil, há muita diversidade, não podemos reduzir essa diversidade. 

 

Podemos fazer uma divisão entre elas. As organizações da sociedade civil de primeiro piso são aquelas cujos membros são os organizadores, o que cria um perfil de associações comunitárias, então não membros organizadores são da mesma categoria social, como associações de bairro. No segundo piso que são entidades que trabalham para terceiros, como filantropia e assistência social. O terceiro piso é um tipo de organização da sociedade civil que não trabalha para pessoas, mas para outras organizações.

 

Se você pensar na sociedade civil nesses 3 pisos eu diria para você que é possível apreciar que houve algumas mudanças importantes no Brasil no contexto da pós democratização. O tipo de organização de segundo piso, no Brasil, eram, basicamente, assistenciais, e é a forma mais comum de organização no país. Esse é tipo de organização da sociedade civil que vem crescendo nos últimos 30 anos e tematizando questões diversas. Áreas climática, de gênero e raça, por exemplo, têm ajudado enormemente a alongar a compreensão desses problemas na sociedade brasileira, isso não se faz em um dia, são décadas de muito trabalho de mudança da opinião pública. 

 

No Brasil também começamos a ter um conjunto de organizações de terceiro nível que demonstram que a sociedade civil se tornou mais complexa, mais variada e passou a criar suas próprias organizações para facilitar seu trabalho. Então para você ter uma boa vida, você precisa de muitas ONG. Para que uma ONG seja boa ela precisa de alguém que entenda e discuta legislação, alguém que olhe para as questões fiscais, alguém que coordene a pauta, coordene a busca por recursos. Há muitas organizações no Brasil recentes que mostram que, de fato, houve uma mudança importante na visão das pessoas, como Fundação Abrinq, Gife e outras. 

 

Também passaram a surgir associações de financiamento da sociedade civil, isso era raríssimo antigamente. O que ajudou a criar a sociedade civil no Brasil, do ponto de vista da defesa em espaços para se manter o pensamento independente, foi o dinheiro das fundações liberais americanas. Não existia um cálculo estrutural da filantropia nacional para financiar a sociedade civil, existia a filantropia para assistência social e isso mudou extraordinariamente nos últimos anos. O primeiro ponto foi construir fundações com o estilo americano, fundações de herdeiros, pessoas com muitos recursos, como de família que não é cada um dos membros tem uma função na fundação, mas elas estão financiando organizações da sociedade civil, então são financiadoras, a gente não tinha financiadora da sociedade civil aqui, essa foi uma mudança muito importante.  

 

ROBERTA: É exatamente o caso do patrocinador do nosso podcast, o Movimento Bem Maior, que é um movimento formado por milionários e bilionários que estão promovendo a sustentabilidade de pequenas organizações. Aproveitando que estamos falando sobre dinheiro: a gente sabe que, em países como os EUA, a cultura de doação e o próprio terceiro setor são muito mais fortes do que aqui no Brasil, inclusive em termos financeiros. De que forma dá pra comparar estes níveis de impacto em diferentes sociedades. Até em relação a nossos vizinhos aqui na América Latina há diferenças relevantes?

 

ADRIAN: As doações são importantes porque é uma forma de financiamento. A questão é entender como se viabiliza financeiramente as organizações da sociedade civil, diferentes contextos e modelos distintos, mas vamos dar um passo atrás antes. Frequentemente escutamos que no Brasil não há cultura de doação, o parâmetro de comparação é sempre os Estados Unidos, mas uma quantidade enorme de países não se encaixam no modelo deles, não só o Brasil. A sociedade civil se sustentam por 3 formas: doações, podem ser de pequenos e grandes doadores; trabalho voluntário, estimula a solidariedade, na nossa cultura o trabalho voluntário é muito comum; e recurso público, e pode ser via dedução de impostos ou até editais do setor público. 

 

Em países como o Canadá, Noruega e Suécia o Estado assume que a sociedade civil desempenha um papel fundamental na sociedade e aloca recursos públicos para que a sociedade civil possa fazer esse trabalho não lucrativo porque é fundamental para o tecido da sociedade.  No Canadá, por exemplo, eles produzem uma grande quantidade de associações que são sustentadas por recursos públicos e ninguém faz CPI ou pensa que é uma atividade corrupta, pelo contrário. No Brasil boa parte dos hospitais são associações filantrópicas, vivem de recursos do SUS, mas para funcionar mesmo precisam recorrer a outras formas de arrecadação, a pandemia deixou claro que sem hospitais filantrópicos o Brasil não tem saúde.

 

Independente do lugar, uma das fontes de financiamento mais importante da sociedade civil vem do Estado, quando ele desempenha funções de política pública, o Estado precisa reconhecer que assim como partidos são fundamentais e recebem público, as organizações do terceiro setor também precisam, elas deveriam estar no Congresso. Há muita coisa para se discutir no Brasil, o debate ainda fica concentrado no ponto de vista do financiamento direto. 

 

Para mim, precisamos falar sobre como que a gente pode ter uma interlocução maior entre o terceiro setor e a política. Tem tanta bancada no Congresso, porque os representantes do terceiro setor não estão ali também? O movimento do setor acaba sendo o contrário, não querem se envolver com o Estado, mas fazerem “as coisas sozinhos”, e aí não estimula a relação próxima que poderia, e deveria, existir entre esses dois pólos. Tem muita desconfiança de ambos os lados, temos um advocacy – advocacia voltada ao terceiro setor – muito fraca na nossa sociedade, embora muitas organizações estejam fazendo um trabalho insistente e corajoso, que já gerou algumas mudanças como o Marco Civil Regulatório. Imagina o que a gente conseguiria tendo uma bancada no congresso? Mas, para a gente se aproximar, precisamos ter nossos próprios candidatos, e, com um setor tão plural, é muito difícil. Mas, existem parcerias de sucesso em bancadas temáticas, como do meio ambiente e educação.

 

A sociedade civil também tende a ser comunitária, então candidaturas coletivas devem ser incentivadas, é uma forma sistemática, de segmentos sub representados aparecem mais. Um trabalho coletivo aumenta a capacidade de mobilização, doação, efetividade e representação desses segmentos. É uma forma de “hackear” o parlamento e chegar nesses espaços, assim é possível trazer uma agenda transversal à sociedade civil para representar demandas mais voltadas para o maior financiamento, por exemplo. 

 

É duro comparar a captação de recursos no Brasil a dos Estados Unidos dados tamanhos das economias e toda a estrutura socioeconômica e cultural 

 

ROBERTA: Adrian, te agradeço mais uma vez pela grande aula! Obrigada, professor, foi muito importante e esclarecedor esse papo. Saio daqui sabendo mais e sabendo uma nova perspectiva que foge dos lugares comuns nem sempre corretos que a gente tem sobre organizações da sociedade civil. 

 

ADRIAN: Eu que agradeço! Tchau

 

ARTUR: Incrível esse papo, hein, Roberta? E eu vou aproveitar o gancho pra falar das dicas do quadro “Pra Saber Mais”.

 

E nada mais adequado do que fazer da nossa primeira sugestão um livro do entrevistado de hoje. O Adrian está entre os organizados de “Movimentos Sociais e Institucionalização”, obra que tem tudo a ver com o tema do episódio. Os textos do livro analisam diferentes movimentos e organizações da sociedade civil, no Brasil e na América Latina, mostrando como suas demandas são capazes de impactar diretrizes de governo. Ou seja, se aprofundam na relação entre sociedade civil e Estado.

 

ROBERTA: Artur, olha que agora é minha vez de pegar o gancho dessa sua ótima dica literária. Seguindo a mesma linha, outra sugestão ideal pra quem se interessou pelo assunto é o livro “Advocacy: Como a Sociedade pode influenciar os rumos do Brasil”, da Daniela Castro. No livro, a Daniela, que é CEO da agência Impacta Advocacy, parte do básico. Ela explica a importância e como funciona a prática, mas também traz orientações detalhadas pra sua organização exercer o advocacy de forma responsável e eficiente. 

 

E, ainda no campo do advocacy, outra leitura em que vale a pena se aprofundar é o artigo “Por que investimento sustentável significa investir em advocacy”, da revista norte-americana Stanford Social Innovation Review. Escrito pelo empresário e filantropo Alan Schwartz e o economista Reuben Finighan, ele mostra caminhos interessantes de como negócios sociais podem causar mudanças reais por meio do advocacy sem deixar de lado a sustentabilidade financeira. Ah, vale lembrar que o artigo está originalmente em inglês.


ARTUR: Trazendo à tona um assunto do qual inclusive a gente tratou recentemente aqui no programa, também recomendo assistir à apresentação do cientista político Rob Reich no festival Aspen Ideas. Falando de filantropia e democracia, ele aborda de forma bem analítica a concentração de recursos dentro da filantropia e como isso dificulta alcançar resultados em justiça social e no combate à desigualdade. É uma palestra super interessante pra refletir sobre o tema e como o terceiro setor pode aperfeiçoar suas práticas pra contribuir de forma ainda mais igualitária com a sociedade.

 

E, numa espécie de continuação do nosso papo de hoje, você pode escutar o episódio 54 aqui do podcast mesmo, “Organização da sociedade civil: história e futuro”. Lá, dá pra ouvir o papo completo que a gente bateu com o sociólogo Domingos Armani e entender mais sobre as origens do terceiro setor. É um complemento pra muita coisa que a gente falou aqui, então vale a pena!

 

Você encontra todos os links pras dicas de hoje na descrição do episódio. Artur, foi muito massa a conversa com o Adrian, me trouxe uma nota de esperança olhando para nossa evolução e conquistas já feitas, além de falarmos sobre novas formas de sustentabilidade financeiras, que são essenciais. Mostramos o poder da ação conjunta entre o terceiro setor e o Estado e como isso é o que traz a maior transformação social. As ONGs prestam serviços em áreas que o Estado não “está dando conta”, como creches e asilos, por exemplo. Trabalhar para uma causa é importante para a sociedade e deixar as organizações decidirem como usar melhor esse recurso com essa doação de confiança é algo que as instituições chamam de terceira onda de organizações do terceiro setor: são as organizações que contribuem para o desenvolvimento institucional e que tem pautado essas ações pela confiança. 

 

ARTUR: Como a gente pode cobrar o Estado? A gente tem que assumir e parar de lidar com nesse setor também com uma hipocrisia que toma conta do poder público e das relações da sociedade com questões relacionadas ao bem comum. A gente sabe que o Estado não está dando de tudo, e as ONGs acabam ocupando um espaço fundamental em diversos setores, mas a gente tem que fazer de conta que isso é só um paliativo, fica tudo não oficializado e nem muito claro. Ou o Estado cumpre o seu papel e realmente as ONGs não precisam ocupar esses lugares, o Estado precisa encontrar forma de financiar as ONGs e beneficiá-las através de legislações tributárias mais favoráveis e tudo ou então tem que reconhecer o seu papel. Pessoalmente, tenho dúvidas sobre esse financiamento direto oficial do Estado, como um fundo partidário para as ONGs, dado a realidade da governança muito poluída por corrupção de recursos, acho que seria um complicador e poderia abrir espaço para coisas terríveis que no final das contas ia transformar o terceiro setor num demônio mesmo.

A certeza é: o Estado precisa criar formas de financiamento ou facilitação de financiamento para as organizações do terceiro setor cumprirem um papel importante que elas cumprem na prática na sociedade. É absurdo a gente ter um sistema tributário desfavorável como a gente tem hoje. É um absurdo não existirem mecanismos mais favoráveis para as empresas que financiam organizações, queremos fazer mais isso ou serem mais reconhecidas por essa iniciativa.

 

ROBERTA: E chegamos à conclusão de mais um episódio… espero que sabendo bem mais sobre o lugar central que o terceiro setor ocupa na nossa sociedade. O melhor é que, se você quer continuar esse papo, basta dar uma olhada no nosso Instagram e LinkedIn no @institutomol. Não esquece de deixar seu comentário por lá e compartilhar com seus contatos se você curtiu o episódio de hoje. Também aceitamos críticas e sugestões. Assim, trazemos um conteúdo ainda melhor pra vocês das próximas vezes. Ah, e pode distribuir aquelas estrelinhas no Spotify pra que mais gente possa ouvir e participar da conversa…

 

ARTUR: Esse podcast é uma produção do Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior. O episódio teve produção e roteiro de Leonardo Neiva, com roteiro final e direção de Ana Ju Rodrigues e Vanessa Henriques, assistência de gravação de Vitória Prates, arte da Glaucia Ribeiro e divulgação de Júlia Cunha, todas do Instituto MOL. A edição de som é do Bicho de Goiaba Podcasts. 

 

Esse episódio usou áudios da Rede Globo e do Observatório do Terceiro Setor.


Até a próxima!

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