Transcrição EP #89 – Descentralização de recursos no terceiro setor

ROBERTA:  Salve, salve nação doadora!

Tá no ar o seu podcast favorito sobre cultura de doação, produzido pelo Instituto MOL com apoio do Movimento Bem Maior.

Aqui, você fica por dentro dos assuntos do momento na filantropia e na cultura de doação,

a partir de informações, pesquisas e entrevistas com importantes personagens do setor no Brasil.

Tudo de forma clara e objetiva, sem enrolação

 

Eu sou Roberta Faria

 

ARTUR: Eu sou Artur Louback

 

E, semana sim, semana não,  a gente te convoca a vir junto nessa conversa, pra inspirar mais e mais pessoas e empresas a doar! Doar com propósito, com consciência e com o coração!

 

Afinal,

 

ROBERTA/ARTUR: aqui se faz, aqui se doa!

 

ROBERTA: Olá, estamos de volta!

 

E nosso bate-papo de hoje vai ser bem especial. Vamos falar de um tema que impacta a grande maioria dos assuntos que já passaram por aqui nas diferentes temporadas do podcast. 

 

Na verdade, um problema que afeta de maneira profunda o funcionamento do terceiro setor no Brasil, com o qual as organizações sociais vêm tentando lidar há um bom tempo.

 

Você deve estar aí curioso, se perguntando sobre o que estamos falando, então não vou fazer muito mistério. Nosso assunto de hoje é a centralização das doações, dos recursos e da visibilidade em algumas poucas Organizações da Sociedade Civil, em sua maioria na região Sudeste.

 

Vamos partir dos resultados impressionantes de um estudo feito pela Iniciativa Pipa, que aponta os principais entraves pro acesso a esses recursos nas periferias do país, seja por meio de doações individuais, investimentos privados ou parcerias com governos. 

 

E pra falar com mais propriedade sobre o estudo, quem estará hoje aqui conosco é o cientista social Gelson Henrique, cofundador e coordenador-executivo da PIPA.

 

Bora começar esse papo?

 

ÁTILA ROQUE: Uma das coisas que a gente verificou ao longo desses últimos 20 anos foi justamente a entrada em cena… e veja só, a entrada no sentido da sua visibilidade, porque sempre estiveram nas lutas sociais dentro dos territórios. Mas a entrada em cena na esfera pública de, pra usar um desses chavões, novos atores sociais. Que não são exatamente novos, mas que ganharam importância à medida em que a agenda da democracia, da participação e da igualdade passa a ganhar centralidade. E, entre esses novos atores, você destacou pra mim aqueles que estão trazendo talvez a maior novidade, que são em primeiro lugar a juventude periférica negras, das periferias de nossas cidades, tanto dos grandes centros urbanos, Rio, São Paulo, mas também no Norte, também no Nordeste, também em outras regiões do país, você tem hoje uma vitalidade trazida pelo ativismo, trazida pela juventude que é absolutamente extraordinária e que vem provocando o campo dos atores tradicionais.”

 

ARTUR: É dessas periferias mencionadas em entrevista à CNN pelo Átila Roque, diretor da Ford Foundation, que trata o estudo que a Roberta acabou de citar, de 2022, chamado “PERIFERIAS E FILANTROPIA – AS BARREIRAS DO ACESSO AOS RECURSOS NO BRASIL”.

 

Num mar composto por cerca de 851 mil (oitocentos e cinquenta e uma mil) OSCs que existem hoje por aqui, a PIPA mapeou mais de mil ações espalhadas pelo Brasil e conversou com 607 (seiscentos e sete) gestores responsáveis por fazer a engrenagem dessas organizações funcionar.

 

Dentre os dados, o estudo aponta que pelo menos 60% dessas iniciativas são bem pequenas, funcionando com no máximo 10 membros. Na maior parte, mulheres pretas ou pardas que precisam se desdobrar em outros trabalhos pra ganhar a vida. Mas, apesar dessa limitação, quase 80% delas atendem mais de 250 beneficiários por ano, gerando um impacto considerável dentro de suas comunidades.

 

Outro dado, aponta que 46%, ou seja,  quase metade dessas organizações, contam com de zero recursos a no máximo 5 mil reais pra funcionar por um ano — uma informação extremamente preocupante.

 

E esses recursos vêm de editais públicos, doações individuais ou são tirados dos próprios bolsos desses gestores, com muito sacrifício pessoal.

 

Agora tenta imaginar como essas organizações conseguiram se manter de pé num período como a pandemia… 

 

Anos em que a demanda por atendimentos cresceu muito e os recursos entraram bem menos, como revelaram 56% delas nessa mesma pesquisa.

 

Difícil, né? Vamos ouvir agora um depoimento que a Miriane Coelho, secretária da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém, no Pará, deu à Iniciativa PIPA. A organização foi uma das centenas que participaram do estudo.

 

MIRIANE COELHO: “Os editais que nós estivemos no período da pandemia, que foi um período que houve os editais de incentivo à cultura, não foram editais que nós fôssemos contemplados. Porque foram editais muito burocráticos, que tinham perguntas absurdas que a gente não conseguiu responder. Uma delas, por exemplo, é ter portfolio. Nós não temos essa prática de ter portfolio. Não temos a prática de colocar tudo nas redes o que fazemos. Fazemos muita coisa, mas não temos a prática de colocar em mídias sociais, até porque esse território que nós estamos hoje, o território do Arapumã, nós não temos energia. Não dá de pensar nos quilombolas do Pará como um todo porque nós somos muito diferentes. Nós estamos no meio da Amazônia. E nós aqui, os quilombolas do oeste do Pará, estamos mais distantes ainda. Então, quando for pensar em edital, tem que pensar na distância. Porque a Amazônia é muito grande, é banhada de rios, de muitas terras, muitas árvores. Então as populações tradicionais estão muito distantes da cidade.”

 

ARTUR: Essa fala da Miriane é importantíssima porque escancara um grave problema que tem impedido que esses recursos cheguem a quem mais precisa deles.

 

Estou falando da falta de recursos e preparo pra que algumas OSCs formalizem sua existência. Na pesquisa da PIPA, foram 95% os gestores que disseram precisar de algum tipo de formação pra gerenciar o dinheiro e os projetos que organizam.

 

Então, na hora de participar de um edital, como no exemplo da Miriane, de buscar uma parceria ou cuidar dos recursos que vêm das doações, a esmagadora maioria dessas organizações não têm o conhecimento necessário. 

 

E nem muita ajuda, para falar a verdade…

 

ROBERTA: Pois é, Artur. E o problema aqui no Brasil é que nem sempre conseguimos dar a medida dessa desigualdade entre organizações do terceiro setor. Enquanto algumas monopolizam as doações, investimentos, parcerias e o debate público como um todo, outras sobrevivem com muito pouco. 

 

Como vimos, em boa parte dos casos, com zero recursos mesmo…

 

Apesar do avanço da transparência no terceiro setor, ainda não temos rankings que meçam de forma concreta essa disparidade. Foi pensando nisso que nossa produção decidiu dar um empurrãozinho e fazer uma pequena parcela desse cálculo por nossa conta.

 

O que fizemos foi partir de uma lista das OSCs mais conhecidas do país. Pra isso, buscamos as mais citadas em notícias ao longo dos últimos anos, as que têm mais força nas redes sociais e também as que estiveram em eventos como o Prêmio Melhores ONGs e plataformas como o Monitor de Doações.

 

Depois, avaliamos os números de arrecadação com doações, patrocínios e a receita final de todas elas, com base nos dados públicos, disponíveis nos sites das organizações, referente aos anos de 2021 e 2022. 

 

ARTUR: Pra começar, é preciso apontar a onipresença de organizações da região Sudeste. Das 25 instituições selecionadas em nossa pesquisa de produção do episódio, 21 são desta região, quase todas de São Paulo e Rio de Janeiro.  Apenas uma delas está no nordeste.

 

Das quatro que restaram, três são escritórios de organizações internacionais, que se instalaram em Brasília pela proximidade com o coração político do país. 

 

Uma reportagem recente da BBC Brasil apontou que ONGs internacionais vêm ampliando sua arrecadação no país nos últimos anos. 

 

Na avaliação de Patrícia Mendonça, que faz uma pesquisa sobre o tema na FGV, as ONGs internacionais acabam largando na frente e ocupando mais facilmente esses espaços, principalmente por terem nomes mais reconhecidos e melhores estruturas pra montar uma rede de captadores e atrair doações do que organizações pequenas ou começando.

 

ROBERTA: Agora, vou propor pra vocês um exercício de imaginação. Juntas, as 25 ONGs que selecionamos tiveram uma receita anual de 12,1 bilhões de reais. Vamos pensar então naquelas organizações citadas na pesquisa da PIPA, que sobrevivem com um máximo de cinco mil reais por ano.

É importante um parênteses para citar aqui que as instituições da área da saúde que observamos em nosso levantamento, por exemplo, tem boa parte dos seus recursos vindos do SUS, e ainda os valores que as fundações apresentam em seus balanços, não são necessariamente recursos totalmente aplicados em projetos, como é o caso dos chamados endowments…

 

Mas, só pra você ter uma ideia, pra fazer o mesmo montante desse punhado de ONGs no topo da lista, seriam necessárias mais de 2 milhões e 400 mil organizações que tivessem uma receita de 5 mil reais.

 

Ou seja, precisaria multiplicar por três todo o ecossistema do terceiro setor no Brasil. É esse o nível absurdo de concentração de recursos…

 

A educação e a proteção à criança e ao adolescente, aliás, foram os temas que mais apareceram entre as organizações selecionadas. Já o fomento à cultura ou a justiça racial figuraram poucas vezes entre as instituições.

 

ROBERTA: Artur, esse desequilíbrio que encontramos no terceiro setor não chega a ser uma surpresa. Não podemos esquecer que o Brasil é um dos campeões de desigualdade social e de renda no mundo. Um dado que carrega consigo fortes implicações raciais e regionais.

 

Em 2022, a parcela de 1% dos brasileiros mais ricos ganhava 32 vezes mais que a metade mais pobre da população. E 1% dos homens brancos mais ricos ainda recebem mais que todas as mulheres negras do país. Sem falar na disparidade social e financeira entre estados do Sul e Sudeste em relação ao Norte e Nordeste.

 

ARTUR: É isso, Roberta. 

 

E agora, pra dar continuidade a esse papo, vamos chamar aqui alguém que esteve à frente dessa pesquisa riquíssima da Iniciativa PIPA, com potencial pra ajudar na transformação da nossa realidade.

 

O Gelson Henrique, além de coordenador-executivo, é um dos fundadores dessa organização que trabalha pra conectar movimentos periféricos a recursos filantrópicos pelo país.

 

Vamos ouvir a conversa que tive com ele.

 

ARTUR: Gelson, estamos muito felizes com sua presença aqui hoje! Pra abrir nossa conversa, você pode falar um pouco do trabalho que vem desenvolvendo junto com a PIPA? Quais as maiores dificuldades pra fazer com que os recursos cheguem a essas organizações?

 

GELSON: Quero agradecer muito por estar aqui! Sou Gelson Henrique, falo do Rio de Janeiro, sou nascido e criado em Campo Grande, periferia no Rio, sou sociólogo de formação, faço mestrado em Políticas Públicas e estou como coordenador executivo da Iniciativa PIPA; a PIPA é uma organização que pensa a filantropia a partir da periferia. 

A democratização de recursos para as periferias é uma agenda chave para o campo de doação do país. É muito importante que pense e repense a maneira que se está alocando recursos no Brasil hoje, porque nós entendemos que as periferias são o motor da transformação social no país. 

 

Na pandemia, fomos nós que mitigamos os danos da COVID-19 no Brasil. Se não fossem as periferias, como seria 2023? As periferias fazem isso com pouco ou nenhum recurso, e é aí que entendemos a importância da criação da Iniciativa PIPA para colocar esse tema em debate e construir novas discussões a partir desse olhar.

 

ARTUR: Gelson, eu noto, por diversas iniciativas que, a tecnologia aumentou a ressonância dos que não tinham voz ou não tem ainda hoje. As periferias estão pulsando muito no campo social e do empreendedorismo social, isso nunca foi tão potente antes, mas, ao mesmo tempo, a pesquisa mostra que, do ponto de vista institucional, esses movimentos vivem com uma precariedade considerável, ou seja, o recurso ainda está muito concentrado nas grandes organizações, principalmente nas que são associadas a grandes empresas ou grandes fortunas.

 

Pessoas de grande iniciativa, grandes agitadores comunitários conseguiram formar movimentos coletivos que têm capacidade de impactar muita gente, a pesquisa deixou isso muito claro, eu queria que você comentasse um pouquinho essa dicotomia do aumento da voz da potência dos movimentos vindos da periferia e a falta de recursos institucionais.

 

GELSON: Dois pontos importantes aqui: esse movimento de conseguir estar em mais espaços e com mais alcance para estratégias foram sendo construídas pela periferia a partir de mídias locais, a partir de produção de comunicação, isso fez com que nossa fala se escalasse. Mas é importante pontuar que nós sempre tivemos voz,  só que com as redes sociais e produções de mídia alternativa nós conseguimos escalonar mais o nosso impacto e onde nossas vozes, nossos debates argumentos e qual nós vemos que nós temos grande entrada narrativa de debate estratégias políticas e de retorno na transformação social, mas ainda assim nós fazemos com pouco ou nenhum recurso.

 

Quem dá o recurso? Nós não temos acesso a essas pessoas, e, dependendo da região, esse problema é ainda maior. Na região Norte e Nordeste, onde eu falo das periferias que não estão nas urbanidades, então como essas pessoas vão ter acesso a recursos? Um ponto que sempre debatemos internamente: como democratizar recursos também através de conexões e construções de articulações. O corpo da doação hoje não vem da favela, quem doa faz parte de um gênero, uma sexualidade, uma região e outros. Entendemos que a construção de confiança desse doador era consolidada a partir de relações e essas relações elas não estão dadas para qualquer pessoa, esse é um ponto que eu acho que é importante dizer. 

 

Com a pesquisa da PIPA queremos mostrar o que nós estamos fazendo institucionalmente, esses são temas que nós estamos trabalhando porque muitas das vezes os doadores falam assim: “Não conheço organizações que atuam nisso e naquilo” o PIPA fala: “Eu estou aqui porque eu conheço, chacoalhando o ecossistema”. Existem, no mínimo, 607 organizações mapeadas pela PIPA, essa é a realidade e 48% delas tem CNPJ para repasse de recursos

 

O repasse de recursos é uma escolha, às vezes falar de dinheiro parece algo místico, mas não é, precisamos falar de dinheiro para poder trabalhar. O voluntariado carrega as ONG’s da periferia, historicamente. Na pesquisa do PIPA vemos que 89% das equipes gestoras dessas organizações possuem outro emprego, são jornadas duplas de trabalho e, se forem mulheres, são triplas com os filhos. Essas são as condições do movimento social que as organizações de ser o setor da periferia enfrentam. 92% das organizações não têm nenhuma pessoa contratada por CLT. Nós precisamos de financiamento para o fortalecimento institucional das organizações, a periferia não é a única beneficiária do recurso, nós somos parceiros estratégicos para a transformação social e para a consolidação da missão desse doador e é assim que nós precisamos ser vistos.

 

A PIPA quer se colocar no campo para fazer essa disputa sistêmica de ser essa ponte que vai juntar esses doadores com as periferias, entender como que a gente maximiza o impacto que esse recurso está tendo, como a gente faz com que esse recurso tenha um impacto efetivo nas pontas.

 

ARTUR: Perfeito! Trazendo uma polêmica, 92% das 607 organizações que vocês entrevistaram não tem nenhuma pessoa contratada CLT, da pandemia para cá, notamos pouquíssimas organizações nascidas na periferia com uma proposta de impacto na periferia. Algumas organizações da periferia se tornaram gigantescas, como a Gerando Falcões batendo recordes de arrecadação, mas que contratam pessoas vindas de grandes empresas como executivos dessas organizações, o que, a princípio,  é maravilhoso para desenvolver o terceiro setor.

 

Mas, vemos as desigualdades nas organizações sociais: algumas não conseguem contratar ninguém e outras estão pagando salários de executivos de empresas para seus diretores. Como você vê essa diferença? Tem mais a ver com a falta de uma formação de conhecimento formal dos gestores dessas ONG’s ou elas tiveram que fazer concessões para acessar recursos e profissionais dessas grandes empresas?

 

GELSON: A principal chave para potencialidade na captação de recursos é a rede. Não sei sobre concessão, mas acho que é mais sobre acesso a quem tem esse recurso. Muitas organizações não estão na periferia, mas dizem atuar lá, e recebem doações milionárias, o que eu quero trazer para cá é, em um cenário ideal, as organizações que estão na ponta também receberiam essas grandes doações. 

 

Se os doadores fossem parar para escutar qualquer um dos pesquisadores da PIPA que construíram essa pesquisa e qualquer uma dessas organizações eles iam querer doar a nível de agenda porque a gente sabe o que nós estamos fazendo, temos uma conexão com o próprio território e que está fazendo efetivamente o trabalho, mitigar desigualdades é a chave. Essa oportunidade de conexão e articulação de quem são esses doadores com as organizações de ponta é essencial, assim aumentam os recursos e o impacto. Mesmo com o mínimo, o impacto das organizações já é gigantesco, imagina se tivessem mais recursos? Mas, para falar sobre financiamento, precisamos também falar sobre qual a estratégia política da alocação de recursos na transformação social no Brasil. 

 

ARTUR: Gelson, supondo, se criasse um Ministério do Terceiro Setor que se propusesse a democratizar mais a distribuição dos recursos e colocássemos lá você como ministro, qual seria a sua primeira canetada, quais iniciativas são urgentes e necessárias para a gente conseguir mudar esse quadro de desigualdade? 

 

GELSON: Meu irmão, aí vamos para outro lugar. O trabalho que a gente vem fazendo hoje na PIPA é muito voltado para filantropia. Entendo que o recurso público é uma outra burocracia, tem muitas coisas no poder público que conseguiria contribuir para a agenda das periferias, mas eu acho que a única coisa que a gente precisa falar é a importância das periferias para a consolidação política do Brasil. Olhar para os atores de periferia como atores chaves de fortalecimento democrático de transformação social, nós estamos construindo resistência no cenário de desigualdade. 

 

Nesse momento, eu não estou debruçado para entender como que o poder público faria isso, focaria em como a filantropia pode apoiar a periferia, e assim também apoiar o poder público.

 

ARTUR: Mesmo na ausência dessa possibilidade de contar com uma estruturação vinda do poder público pode-se contar com o terceiro setor para tentar mitigar esse quadro, ou seja, na prática os donos dos recursos ou quem está com um recurso na mão entrando nesse jogo vendo essa pesquisa e notando que algo precisa ser feito como você acha que geraria mais impacto esse recurso? Na educação de lideranças da periferia a fim de pensar em melhor a gestão dessas organizações? ou é transferência de recurso direto? Ou são todas as coisas ao mesmo tempo?

 

GELSON: Posso ter uma leitura enquanto eu, Gelson Henrique, que acredita que o investimento direto e com fortalecimento do institucional, as próprias organizações vão decidir pra onde vai esse recurso que é isso tem a ver com um debate de confiança na filantropia de entender como que a gente dá liberdade suficiente para as organizações decidirem para onde vai esse recurso e aí isso é sobre confiança é doar é saber que a gente confia nesse trabalho isso também vai fazer o melhor uso desse recurso. Esse é um ponto.

 

Por outro lado, o doador precisa entender qual é a estratégia da organização, para onde vai o dinheiro da sua doação? O que ele está financiando? Como vamos na periferia conversar com essas organizações, que estão fazendo os portfólios e as agendas programáticas do financiamento? Elas precisam ter a ver com o território. É importante que se tenha a periferia e os atores daquela localidade ali dizendo pra onde que precisa de fato ir esse dinheiro: “Nessa comunidade a gente tem uma esperteza gigantesca”. 

 

Com a pesquisa da PIPA visitamos 607 organizações, fomos além para entender o que os dados não estavam mostrando para a gente. 1 a cada 3 organizações vivem com menos de R$ 5000 ao ano, e, elas estão transformando sua região com muito pouco dinheiro na mão, mas em que condições estão fazendo isso? Os dados não mostram tudo pra gente, o outro lado só vindo lá e dialogando com as organizações e a periferia, e assim vamos construindo essa agenda programática de financiamento no país. 

 

ARTUR: Bacana. A pesquisa deixa clara esses números que você mesmo destacou, e esses dados me impressionaram. Mas queria falar sobre o outro lado, mesmo que sejam pouquíssimas, algumas organizações têm mais de 20 pessoas contratadas CLT ou conseguem ter um orçamento relativamente grande. Queria que você comentasse um pouco sobre esses achados improváveis. Qual o perfil dessas organizações? O que elas têm de diferente dos outros?

 

GELSON: Esses casos não são usuais, mas acontecem. Não é um milagre, eu acredito que é devido às conexões e articulações de oportunidades: tiveram acesso aos financiadores. Mas, no fim, não é sobre tirar recursos dessas que já tem, mas como a gente pode colocar mais recursos nas que não tem uma estrutura de captação? A gente sabe que tem muito recurso no país, e a gente precisa pensar em quais caminhos eles fazem: para onde vão? Quem está impactando? Chegam na periferia? Eu acredito na rede de oportunidade.

 

ARTUR: Você falou muito dessa característica das redes, e, pelos dados, percebemos que boa parte das organizações são coletivos, que se juntam e formam grandes coligações, e, essa é uma característica de atuação das organizações que se tornaram grandes depois, como CUFA e Gerando Falcões. Ou seja, elas acabam trabalhando muito em rede e assim conseguem chegar mais longe. A minha questão é: Essa é uma estratégia de sobrevivência, dado ao cenário atual  ou é uma característica própria da cultura da periferia? Essa necessidade que já nasce com a  característica de atuação em rede como uma estratégia de potência. A Gerando Falcões hoje tem milhões no caixa, mas continuam atendendo em rede, por exemplo. É algo a se ensinar para as empresas e elite que tendem a atuar muito sozinhas? 

 

GELSON: Existem complexidades nesse meio de campo, o que eu acredito é que, historicamente, nós precisamos atuar coletivamente, porque é o que temos. Por exemplo, existe um dado, na pesquisa, sobre a fonte dos recursos: a grande maioria vem de doação de ações individuais e de recursos próprios, e aí fomos entender o que são as doações de ações individuais na periferia. Por exemplo, o seu Zé, dono da padaria, sabe que a organização atende X número de crianças, então ele vai e fornece o café da manhã para elas, assim fortalece a organização, isso é um trabalho de comunidade. 

 

Algo que venho investigando é como a própria periferia “financia” essas organizações. Não só financiamentos convencionais, mas faz com que a organização exista e também resista. 

 

A própria comunidade potencializa e possibilita que esses trabalhos sejam feitos na periferia, essa é a premissa do trabalho em rede, a coletividade. Sem financiamento, como vamos fazer as coisas? Vamos juntos. E se conseguirmos financiamento? Vamos fazer juntos também. 

 

Historicamente, nós precisamos dar conta e também precisamos de agilidade. Se é decidido fazer um trabalho comunitário, não tem como esperar o financiamento chegar, montar um planejamento estratégico e fazer uma análise, a gente precisa fazer com que essa realidade mude e mitigue os impactos negativos, então a gente vai fazendo do jeito que dá, a partir das necessidades do trabalho e as demandas da comunidade. Só depois se pensa na estruturação, e isso é muito importante para o fortalecimento institucional, porque assim é possível se dedicar integralmente à organização, e não precisa de um outro emprego, por exemplo. 

 

ARTUR: Queria que você falasse um pouco sobre os próximos passos da PIPA. No que vocês estão trabalhando atualmente? Quais próximos estudos devem sair? 

 

GELSON: A Iniciativa PIPA trabalha em 3 eixos estratégicos, pesquisa é um deles, nós vemos como uma maneira de pensar o ecossistema a partir da produção de conhecimento e novas ferramentas para facilitar o repasse de recursos. O segundo é da sensibilização e articulação com os doadores de como eles começam a pensar a sua doação e o seu repasse de recursos. E, nosso último braço é mais estratégico, pensa a formação das organizações da periferia, pensando em como elas podem captar mais recursos, prestar contas e gerir seus projetos. 

 

Atualmente, nós estamos fazendo uma pesquisa de mapeamento de organizações globais do ecossistema filantrópico, algumas da África e outras da América Latina, para estudá-las e construir soluções para resolver os “problemas” encontrados na primeira pesquisa. Além disso, fazemos alguns trabalhos em parceria com periferias, para entender, principalmente, quais as dificuldades de acesso de recursos via edital. Nossa pesquisa indicou que os editais são a principal fonte de recurso das organizações periféricas, mas qual a problemática dessa fonte de renda? Porque só as organizações periféricas são majoritariamente financiadas por editais? Para organizações maiores, edital não é uma realidade, elas trabalham muito mais com investimento direto. Então, entender as preferências dos possíveis donatários de financiamento diretos se faz necessário, essas são nossas áreas de estudo atualmente.

 

ARTUR: Muito bom, Gelson! Sempre que tiverem novos dados podem vir aqui, o microfone é de vocês! 

 

ROBERTA: Que papo incrível! Faz a gente ver que, por mais que se fale da filantropia como ferramenta pra combater a desigualdade, ainda é raro fazermos críticas ao impacto do próprio terceiro setor nessa realidade. Nós não temos as respostas, mas queremos amplificar essa conversa. Afinal, o que podemos fazer pra balançar essas estruturas tão desiguais? 

 

E, aproveitando a deixa de levar a discussão pra muito além deste podcast, vamos dar uma olhada nas sugestões de conteúdo que temos pra hoje? É hora do quadro “Pra Saber Mais”!

 

Começo já com o estudo da Iniciativa PIPA, que está disponível na internet pra quem quiser acessar e se aprofundar no assunto. Além de um relatório super completo e explicativo com todos os resultados que citamos aqui, tem uma série de infográficos úteis pra ilustrar as descobertas. Os links da pesquisa você consegue acessar aqui mesmo, na descrição do episódio:

https://www.periferiasefilantropia.org/

https://www.periferiasefilantropia.org/_files/ugd/45a11b_0ff83da2e1df433c931b855e648855c2.pdf

https://www.periferiasefilantropia.org/_files/ugd/45a11b_2a0233dcca3045d1a6c546f72f49379f.pdf

 

ARTUR: Agora, se você ficou interessado em entender mais sobre o combate à desigualdade através da filantropia, tenho uma dica, nesse caso do mundo da literatura. É o livro “From Generosity to Justice: A New Gospel of Wealth”, que a gente traduz como “Da Generosidade à Justiça: Um Novo Evangelho de Riqueza”, do presidente da Fundação Ford, Darren Walker. Com a contribuição de pensadores, líderes e ativistas, ele encoraja os leitores a considerar a filantropia uma ferramenta pra alcançar a justiça em diferente âmbitos.

 

Apesar de só estar disponível em inglês aqui no Brasil, você consegue encontrar a obra de forma gratuita na internet, lá no nosso site mesmo. Aí basta botar pra funcionar suas ferramentas de tradução e ser feliz:

https://institutomol.org.br/wp-content/uploads/2021/08/generositytojustice.pdf


ROBERTA: Ótima indicação, Artur! E, continuando no campo das leituras, outra recomendação mais acadêmica é o relatório “Afinal, o que os dados mostram sobre a atuação das ONGs”, elaborado pelo Ipea. A partir do documento, a gente consegue ter noção sobre como funcionam e de que forma se dividem os repasses públicos pro terceiro setor. Um spoiler: eles também não acontecem de forma igualitária no território brasileiro.

https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9331/1/TD_2483.PDF4

 

ARTUR: Roberta, como você acha que o terceiro setor vem lidando com a questão da centralização dos recursos? Ainda não vejo como um dos assuntos mais discutidos abertamente por aí e queria ouvir sua sua visão sobre isso.

ROBERTA: Artur, eu sou uma fiel defensora da democracia e acho que a forma nenhuma é perfeita, mas a mais próxima de ser justa em questão de divisão de recursos é sempre por meio de editais. Embora a gente saiba que dentro de uma organização, onde as pessoas às vezes não tem sequer CNPJ ou uma conta de pessoa jurídica, tempo e conhecimento para preencher uma ficha digital, que nem sempre é fácil, na verdade a maioria das vezes é bem complexo, isso acaba sendo uma barreira para continuar privilegiando só as organizações que têm um departamento dedicado à concorrer a editais de recursos públicos e privados. E é aí que eu acho que é responsabilidade de quem é o dono do dinheiro, seja o Estado ou as empresas que promovem editais ou afins pra fazer a escolha de organizações para beneficiar,  seja com destinação de recursos de impostos ou seja com patrocínio direto, fazer esse esforço de pensar maneiras mais democráticas e acessíveis para fazer com que essas chamadas possam contemplar organizações diversas, em diferentes regiões do país, de diferentes tamanhos e de diferentes abordagens de uma mesmo a causa.

 

É um lugar um tanto quanto preguiçoso que a gente ocupa na maioria das vezes. Ir sempre atrás de uma organização que você conhece porque assim é mais “confiável”, teoricamente mais confiável porque já é conhecida do público e aí com e nisso a gente acaba reproduzindo com as mesmas questões do nosso capitalismo tupiniquim que só faz o negócio quem já está dentro do negócio e aí o dinheiro só serve para fazer quem tem dinheiro ter mais dinheiro e a grande maioria continua de fora do grupo. Acho que, como organização doadora, que a gente representa no grupo MOL, nós doamos alguns milhões de reais por ano e essa é uma mea culpa que a gente faz com frequência: nós estamos sendo democráticos o bastante? Estamos abrindo oportunidades para organizações periféricas receberem nossos recursos? Ou a gente está preso ainda na ideia de procurar as mais conhecidas e estabelecidas porque, muitas vezes, são mais “fáceis de trabalhar”.

 

É preciso dizer que não é fácil trabalhar com organização pequena, que não tem estrutura para atender um parceiro e outras complicações práticas. Por exemplo, se você quer fazer uma doação, de maneira legal e correta, mas algumas organizações não tem uma conta de pessoa jurídica, e aí, como faz para passar esse recurso? 

 

ARTUR: Eu acho que estou fazendo uma provocação aqui ao nosso próprio roteiro, mas vamos lá: Na sociedade, em geral, a concentração de recursos acontece sem, digamos, uma meritocracia. As maiores riquezas do Brasil são herdadas e a maior parte dos muito ricos do Brasil vem desde as capitanias hereditárias e hoje a maior parte dos herdeiros são pessoas incapazes de produzir qualquer coisa e vivem multiplicando o seu dinheiro por meio de rentismo.

 

Mas, fazendo um paralelo entre sociedade e organizações do terceiro setor, no levantamento que fizemos das 25 mais bem geridas, elas são organizações que funcionam muito bem, usam muito bem os recursos. Esse é um cobertor curto, se pegarmos todo o montante de recursos que se tem no terceiro setor – considerando que são 8500 organizações no país – acaba que é difícil se moer. Mas, continuo concordando que existe uma enorme concentração e sou a favor de distribuir melhor, mas, vale destacar, que a gente não está falando da concentração de recursos em um estado improdutivo, que é o que acontece na sociedade como um todo, mas sim de algo útil e produtivo. 

 

A impressão que eu tenho, seguindo a minha experiência, seja através da gestão de recursos na ponta dos projetos da Editora MOL ou da MOL Consultoria que eu toquei junto a grandes empresas: essas grandes empresas estão dispostas a gerar impacto social e descentralizar recursos, mas falta conhecimento e falta, talvez uma questão que é o grande problema do Brasil, que é a desigualdade social no país como um todo é tanta que, as grandes lideranças, que, em geral, são pessoas advindas de famílias ricas, elas não conhecem o Brasil, mal conhecem todas as causas que existem no país, e, portanto, não conhecem todas as organizações. Malê malê elas conseguem saber o que fazem as grandes, já as pequenas elas não tem a menor ideia. 

 

Por exemplo, o Fundo de Combate a Violência Contra a Mulher, que nós da Editora MOL criamos junto com o Magalu, foi feito justamente para isso. Eles só doavam para grandes organizações relacionadas à causa da mulher e a gente foi lá encontrar pequenas organizações distribuídas pelo Brasil. Desde que a gente começou a fazer isso eles passaram a ficaram muito mais felizes de distribuir os recursos para pequenas organizações e realmente mudaram a maneira que a roda gira. Então, quando as pequenas organizações entram nas grandes empresas, em geral, é algo bem aceito e bem-sucedido. 

 

A questão, nesse caso, é uma certa reprodução da realidade brasileira, do cenário dos donos dos recursos, a elite, está tão distante do setor social, onde realmente estão os problemas, que o desconhecimento é total.

ROBERTA: E acho que isso bate de novo num tema que a gente falou no episódio sobre o problema da falta de representação política do terceiro setor. Muitas das questões que falamos aqui deveriam ser reguladas pelo Estado por meio de políticas públicas para dizer como o dinheiro deve ser investido. A discussão da eterna evolução da lei Rouanet e outras leis de incentivo, mas que poderia ser aplicado também para outros tipos de convênios públicos e para distribuição de outros tipos de patrocínio, até porque como o levantamento, não só o da Iniciativa PIPA mas outros, mas o que vemos: são milhares de pequenas organizações fazendo o trabalho do Estado, que deveria ser do Estado, prestando serviços reduzindo e economizando dinheiro do Estado para o Estado sem ele dar nada em troca. 

 

Os milhões de empregos gerados são milhões de atendimentos em saúde, educação e outros temas sendo feitos por mulheres negras, mães solos contra outros trabalhos, nas suas horas vagas né enfim o Estado deveria estar recuperando recompensando essas pessoas pelo trabalho e pelo impacto que elas causam. O terceiro setor precisaria ser mais organizado para vencer em Brasília. 

 

ARTUR: E o episódio de hoje infelizmente também chegou ao fim. O que você achou dos dados que trouxemos sobre a centralização de recursos na filantropia? Manda sua opinião pra gente lá no nosso Instagram e LinkedIn no @institutomol. E não importa se você curtiu e quer elogiar o episódio ou só pretende deixar uma crítica, pode comentar por lá que estamos aqui pra te ouvir. Só não esquece de distribuir aquelas estrelinhas no Spotify pra que mais gente possa escutar e participar dessa conversa…

 

ARTUR: Esse podcast é uma produção do Instituto MOL, com apoio do Movimento Bem Maior. O episódio teve produção e roteiro de Leonardo Neiva, com roteiro final e direção de Ana Ju Rodrigues e Vanessa Henriques, assistência de gravação de Vitória Prates, arte da Glaucia Ribeiro e divulgação de Júlia Cunha, todas do Instituto MOL. A edição de som é do Bicho de Goiaba Podcasts. 

 

Esse episódio usou áudios da Iniciativa PIPA e da CNN Brasil…

Até a próxima!

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